27.7.06

Estamira

Estamira, de Marcos Prado, Brasil,2004 - Cabine

Documentários sobre personagens excêntricos ou curiosos tendem a cair no erro de apostarem unicamente na forte personalidade do documentado, delegando a seus depoimentos a responsabilidade pelo filme e deixando de lado qualquer preocupação cinematográfica que não seja colocar a câmera diante do personagem e deixá-la rodando.
Estamira (o filme) tinha tudo para ser mais um exemplar dessa tendência, em função da personalidade extremamente fascinante de Estamira (a personagem), foco desse longa de estréia do diretor Marcos Prado. Estamira é uma senhora de 60 e poucos anos, que há 20 busca seu sustento no aterro sanitário de Gramacho, receptáculo diário de mais de 8 mil toneladas de lixo produzido no Rio de Janeiro. Para além de sua história de vida, o que a torna tão fascinante é o fato de ser acometida por distúrbios mentais, uma espécie de esquizofrenia psicótica que a leva a ter uma visão singular, profética, poética, apocalíptica e filosófica do mundo.
De dentro de sua loucura e das condições degradantes de vida a que é submetida, Estamira possui uma lucidez, uma lógica interna à sua concepção de mundo, que não apenas surpreende como inquieta e provoca o espectador, com divagações que abarcam uma gama enorme de questões – como a pobreza e os impactos ambientais causados pelo consumismo predatório – sem com isso cair no didatismo ou em clichês tão comuns quando se trata desse tipo de assunto.
Mas o que realmente diferencia este projeto de Marcos Prado de outros inúmeros documentários “sociais” é sua capacidade de traduzir – através da linguagem cinematográfica (no caso, primordialmente a fotografia e montagem) – o universo no qual habita sua personagem. Não o mundo “real” (lixão, barraco, pobreza, loucura), mas aquele concebido por Estamira, uma realidade quimérica na qual ela vive apartada do mundo, um subterfúgio construído para tornar suportável o peso de uma realidade dura demais para ser vivida.
Embora aproxime-se algumas vezes de uma estética à la Sebastião Salgado – de glamourização e estetização da pobreza em nome de uma certa “denúncia social” – as imagens construídas pelo diretor (não por acaso fotógrafo de formação) conseguem tornar concreta, palpável e assustadoramente coerente a realidade segundo Estamira. Saímos do cinema não apenas impressionados com a personagem e repletos de questões sobre nossa própria concepção de mundo, como também com um vislumbre – graças ao trabalho visual de Prado – de como seria enxergar a realidade através dessa loucura lúcida, ou louca lucidez.
Como diz Estamira, “tudo que é imaginário tem, existe, é”, e de fato assim o é através da câmera de Marcos Prado.

25.7.06

Cinema brasileiro para quem? - Parte 2

Além da grande concentração de documentários entre os filmes nacionais lançados nesta primeira metade de 2006 (assunto tratado na primeira parte deste artigo), outro fator que chama a atenção no ranking de público deste ano é o aumento considerável do total de estréias brasileiras: comparando-se os números deste primeiro semestre de 2006 com o mesmo período do ano anterior, temos um crescimento de nada menos que 72% na quantidade de lançamentos nacionais.
Só que o aumento no número de filmes brasileiros disponíveis claramente não levou a um crescimento relevante de seu público. Ao contrário: num país marcado pela enorme elitização do acesso ao cinema (uma sala de cinema para cada 91 mil habitantes; menos de 5% dos municípios brasileiros com salas de cinema; relação do preço médio do ingresso com o salário mínimo, etc), esses filmes passaram a disputar entre si um determinado público já existente, repetindo dessa forma o que já acontecia entre eles na busca autofágica pelos recursos públicos para a produção.
É sobre essa situação alarmante para o cinema nacional - 83% dos filmes lançados neste primeiro semestre tiveram um público inferior a 50 mil espectadores - de que trato no artigo recém-publicado na Cinética, escrito em conjunto com o crítico e cineasta Eduardo Valente.
Leia a segunda parte do artigo Cinema brasileiro para quem?, intitulado "Leis da selva", em:

20.7.06

Em Segredo

Grbavica, de Jasmila Zbanic, Bósnia, 2006 - Cabine

Premiado com o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, Em Segredo é um dos raros filmes produzidos pela Bósnia. Apesar do sucesso internacional de Emir Kusturica, seu cineasta mais famoso, o ex-território iugoslavo é o único país da Europa que ainda não possui uma câmera 35 mm, ou mesmo um laboratório de cinema, o que torna sua produção extremamente dependente dos países vizinhos ou co-produtores.
Dificuldades como essa fazem parte do cotidiano de seus pouco mais de 4 milhões de habitantes. Logo após a independência da Iugoslávia, em 1992, uma guerra de três anos envolvendo sérvios e croatas destruiu completamente sua capital Sarajevo e levou à morte de mais de 100 mil bósnios e à fuga de outros 2 milhões.
É nesse país que tenta se reconstruir – e no qual a primeira geração nascida no pós-guerra começa a tomar contato com as histórias e conseqüências de tal conflito – que encontramos Esma e Sara, mãe e filha que, juntas, tentam levar uma vida normal, apesar dos escombros deixados pela guerra e das feridas de um passado obscuro.
A diretora Jasmila Zbanic consegue construir, nessa sua estréia em longas-metragens, um relato pungente e dramático, onde as histórias particulares não servem apenas para ilustrar a situação de um país, mas possuem uma força própria, uma verdade que atinge o espectador principalmente através das interpretações precisas de Mirjana Karanovic (conhecida através dos filmes de Kusturica) e Luna Mijovic (em seu primeiro papel no cinema).
O filme começa com a câmera perscrutando um grupo de mulheres, atendo-se pausadamente em cada rosto, até escolher o de Esma, que acompanharemos ao longo da projeção. Cuidando sozinha da filha, Esma precisa manter dois empregos e ainda contar com a ajuda do governo para sobreviver em meio à crise que se abate sobre o país. Enquanto isso Sara, sua filha adolescente, é levada pelos colegas de escola a se interessar cada vez mais pela história de seu falecido pai, morto durante a guerra. O incômodo que tal interesse causa em sua mãe, porém, lhe mostra que muitas feridas do passado ainda não cicatrizaram.
Conforme o relacionamento entre as duas vai se tornando mais tenso, o espectador é levado a acompanhar a extensão e profundidade das seqüelas que a guerra deixou sobre essas pessoas, até o ponto em que tal tensão torna-se insustentável e verdades abafadas a todo custo até então acabam vindo à tona.
Em uma das últimas seqüências do filme, Zbanic nos leva de volta à cena inicial. Temos os mesmos rostos do início, mas nosso olhar sobre eles já não é mais o mesmo. Tivemos acesso ao que se esconde por trás daqueles semblantes imóveis e silenciosos e a história de cada uma delas grita para vir à tona como a de Esma.
Ao invés de optar por um final forte, porém fatalista, a diretora termina o filme com uma fresta de esperança para seus personagens, apostando na verdade como única forma de se enterrar o passado e seguir adiante (como o ônibus que, ironicamente, leva Sara de volta à origem de tudo). Em tempos bélicos como o nosso, essa aposta na capacidade redentora da humanidade foi, provavelmente, fundamental para a aclamação em Berlim.

12.7.06

Cinema brasileiro para quem? - Parte 1

Na última semana de junho, o Boletim Filme B divulgou um dado preocupante para o cinema nacional: 83% dos filmes brasileiros lançados até o momento não alcançaram 50 mil espectadores. A julgar por estes números, substituímos a invisibilidade dos anos Collor (quando praticamente não se produziam filmes nacionais) pela invisibilidade do mercado (quando os filmes são produzidos, mas não são vistos). Para buscar compreender esse dado, é inevitável passar por dois fatores que saltam aos olhos no ranking das estréias nacionais desse primeiro semestre de 2006: o primeiro, analisado em meu artigo recém-publicado na Cinética, é o grande número de documentários sendo lançados comercialmente (o gênero representa um terço dos lançamentos do ano até o momento); o segundo, a ser exposto na segunda parte, é o aumento considerável no número de estréias nacionais (31 contra 18 no mesmo período de 2005).
Leia a primeira parte do artigo Cinema brasileiro para quem?, intitulado "O documentário e o público", em:

6.7.06

Herencia

Herencia, de Paula Hernandez, Argentina, 2001 - Cabine

Criou-se nos últimos anos uma daquelas verdades absolutas que surgem periodicamente, vaticinando desta vez que nossos hermanos argentinos vêm produzindo um cinema muito superior ao nosso. Tal teoria ganhou ainda mais força após o polêmico artigo publicado na Revista de Cinema por um de nossos maiores estudiosos, Jean-Claude Bernardet, intitulado nada sutilmente “Os argentinos dão um banho nos brasileiros”.
O fato é que, se temos a sensação de excelência do cinema argentino, isso se deve porque esse cinema a que temos acesso é apenas um pequeníssimo recorte da enorme produção daquele país. O que chega ao Brasil, na maioria dos casos, é o que de melhor se produziu em nosso vizinho. O argentino que só tivesse acesso a filmes como O Invasor, Lavoura Arcaica, Madame Satã e Cinema, Aspirinas e Urubus, por exemplo, certamente afirmaria o alto nível dos filmes brasileiros, em detrimento da pobreza de sua produção média.
Para cada filme de Lucrecia Martel, Pablo Trapero ou Lisandro Alonso, a Argentina produz – assim como o Brasil – uma infinidade de filmes medianos ou até mesmo medíocres, comédias de costume que visam o grande público e que em pouco ou nada contribuem para a cinematografia argentina.
Herencia, longa de estréia da diretora Paula Hernandez, é um desses filmes que, de tempos em tempos, irrompe por estas paragens, derrubando a tese comum e demonstrando que os argentinos também sofrem de muitos dos males de nosso cinema. Trata-se de uma típica comédia dramática onde dois estrangeiros (ele, um jovem recém-chegado da Alemanha em busca de uma garota pela qual se apaixonou há dois anos; ela, uma sexagenária italiana que veio para a Argentina durante a 2a Guerra Mundial e por lá se estabeleceu) se encontram por acaso e acabam construindo uma amizade – aos trancos e barrancos – com a qual irão aprender e amadurecer. Uma história que já foi contada uma infinidade de vezes, o que leva o espectador a uma contínua sensação de déjà vu ao longo da projeção, embora isso não seja algo que desabone o filme a priori. O problema, no caso do filme de Hernandez, é que essa história é narrada através de uma infinidade de clichês e lugares comuns, tanto no roteiro quanto na linguagem utilizada.
Como bem apontou o crítico Eduardo Valente, Herencia pertence à mesma linhagem de O Filho da Noiva – um melodrama com pitadas de comédia, apelo popular e linguagem clássica – mas em tudo perde na comparação para o filme de Campanella. O enredo previsível, os momentos cômicos mal construídos (concentrados em sua maior parte no personagem alemão), a trilha sonora completamente equivocada, a fotografia simplória, tudo contribui para afastar o espectador do drama daqueles personagens.
Há, na verdade, uma bela história soterrada sob o filme de Hernandez, que é a história de Olinda, a imigrante italiana que precisa resolver a decadência de seu restaurante e a nostalgia de sua terra natal. Há em alguns momentos de Olinda – não em todos, mas alguns – uma verdade, uma vitalidade, uma crença por parte de Hernandez naquele personagem, que não existe em nenhum outro do filme. Ajuda a explicar esses lampejos de vida e interesse da personagem o fato de que Olinda, segundo a própria diretora, foi inspirada em sua avó, logo após seu falecimento. Tal proximidade de um fato trágico, vinculado a uma pessoa tão próxima, pode ter ajudado a diretora a se envolver e superar o esquematismo com o qual construiu todo o restante do filme.
O fato é que, infelizmente, a inexperiência de Paula Hernandez pesou, e muito, nessa sua estréia, fazendo com que mesmo uma despretensiosa comédia terminasse pesada, sem ritmo e desinteressante. Diferentemente da sabedoria popular, os argentinos também erram em seu cinema.

3.7.06

A Criança

L'Enfant, de Luc e Jean-Pierre Dardenne, Bélgica/França,2005 - Mostra SP

Com A Criança, os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne repetiram o feito de Rosetta e entraram para o seleto grupo de diretores duplamente contemplados com a Palma de Ouro em Cannes, honraria dividida com o americano Francis Ford Coppola (premiado por Apocalypse Now e A Conversação), o dinamarquês Bille August (As Melhores Intenções e Pelle, O Conquistador), o bósnio Emir Kusturica (Underground, Mentiras de Guerra e Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios) e o recém-falecido diretor japonês Shohei Imamura (A Enguia e A Balada de Narayama).
Apesar de sua curta filmografia ficcional, o cinema dos irmãos Dardenne chama a atenção pelo domínio técnico e pelo radicalismo de sua linguagem minimalista e sem concessões. Tendo sempre como escopo os desvalidos e excluídos da sociedade européia, os irmãos belgas conseguem realizar um cinema urgente e social sem escorregar para o dogmatismo panfletário de um Costa-Gavras.
É sobre essa rara combinação entre coerência estética e temática, escassa no cinema mundial contemporâneo, de que trato no texto recém-publicado na Cinética sobre A Criança.
Leia a crítica do filme em: