12.4.06

O Novo Mundo

The New World, de Terrence Malick, EUA, 2005 - Cabine

Terrence Malick é um dos menos prolíficos e mais talentosos diretores da atualidade. Cineasta bissexto, dirigiu apenas 4 longas metragens em mais de 30 anos de carreira, mas mesmo com tão restrita obra foi responsável por uma reavaliação do que se conhecia como cinema no início dos anos 70, tanto em termos de imagem e som quanto de personagens e narrativa. Enquanto vários cineastas daquela época se referenciavam à modernidade de um Godard, Malick buscava 40 anos antes, na obra de Murnau, a inspiração para seu trabalho.
Formado por Harvard em filosofia, Malick possui um olhar direfenciado perante o mundo, um olhar que não está interessado em entender ou explicar como o mundo é, mas que se maravilha simplesmente com o fato dele ser. Em O Novo Mundo, seu mais recente filme, estão presentes os principais temas de sua curta filmografia: a relação do homem com a natureza, o lamento pela perda da inocência, a busca por uma nova chance e pela volta a um paraíso perdido, a definição da individualidade e a relação entre o ser e o outro.
O cinema de Malick é um cinema preponderantemente imagético, e nesse sentido O Novo Mundo leva esse trabalho um passo além do realizado em seus filmes anteriores. A narrativa aqui é fragmentada, quase inexistente, os eventos são espasmódicos, como se sua razão de ser fosse apenas permitir a existência das imagens, pois é através delas que Malick conta sua história. “É pela imagem que se retém a sensação do infinito expresso através de limites: o espiritual no material, a imensidão nas dimensões de um quadro”. Essa definição do cineasta e teórico russo Andrei Tarkovsky aplica-se à perfeição ao cinema de Terrence Malick e, em especial, a este O Novo Mundo.
Ao retratar os primeiros contatos entre os exploradores britânicos e os nativos americanos, Malick não busca recriar à perfeição esse encontro fundador da sociedade norte-americana, mas ao invés disso procura experimentá-lo como se fosse a primeira vez. Não se trata da recriação de um fato histórico, mas de contemplá-lo através dos olhos daqueles que o protagonizaram. A câmera de Malick flana pela paisagem, tomando o tempo necessário para que o olhar capte todas as nuances daquele novo ambiente, sublimando o tempo em busca de um continuum que valorize a experiência sensorial acima da compreensão.
A América se apresenta como uma possibilidade de convívio harmonioso com a natureza, um Éden redescoberto – utopia cara a todos os personagens de Malick desde seu primeiro filme –, e nesse encontro com a natureza está também o encontro de cada personagem com sua essência, longe da modernidade e da sociedade. Assim foi com Kit e Holly em sua casa na árvore em Terra de Ninguém, com Bill e Abby na fazenda de Dias de Paraíso ou com o soldado Witt em seu refúgio na ilha de Além da Linha Vermelha. Em O Novo Mundo, quando Smith sobe o rio em busca do chefe da tribo indígena – em uma viagem iniciática em muito semelhante à do personagem de Martin Sheen em Apocalypse Now –, o resultado final é o reencontro com sua própria natureza humana, sua individualidade perdida nas hierarquias militares, contra as quais, ao que indica sua condenação por motim, sempre lutou.
A voz off, parte fundamental do cinema de Malick, continua presente nesta obra. Se em seus dois primeiros filmes essa voz se restringia muitas vezes à função de mera narradora, ainda que capaz de epifanias reveladoras, em Além da Linha Vermelha inicia-se um movimento que atinge sua plenitude em O Novo Mundo: aqui, o off é o espaço do subjetivo, da tentativa de compreensão de si mesmo e do outro, num fluxo de consciência (“Talvez os homens tenham uma única grande alma, da qual todos fazem parte”, nos diz um dos personagens de Além da Linha Vermelha) que permite diferentes pontos de vista. Outra peculiaridade do mais recente filme de Malick é que, enquanto em Terra de Ninguém e Dias de Paraíso a narração em off vem de um único personagem e em Além da Linha Vermelha há uma polifonia de vozes interiores, em O Novo Mundo somos apresentados a uma díade – a subjetividade de Smith e de Pocahontas – que ora se complementam, ora tentam se compreender. Passados quase 2/3 do filme, surge uma terceira voz off, a do colono John Rolfe, que nos causa reações semelhantes às causadas por seu personagem em Pocahontas: estranhamos no início sua aparição, relutamos em nos deixar envolver por essa nova subjetividade e aos poucos nos acostumamos e nos afeiçoamos a ela a ponto de não mais desejarmos o retorno de Smith.
Mas o olhar de Malick não se restringe à América primitiva nem tampouco à visão dos descobridores. Há dois novos mundos a serem descobertos, a América para os ingleses e a Inglaterra para os índios, e Malick os mostra com igual interesse e surpresa. Quando os exploradores retornam à Inglaterra, levando consigo Pocahontas e mais alguns de sua tribo, o diretor reserva a mesma generosidade do olhar ao Velho Mundo, atendo-se a cada detalhe como se, assim como os índios, contemplasse aquele ambiente pela primeira vez. E mesmo em plena civilização a questão da natureza volta à tona, em especial quando um dos índios caminha pelos jardins do palácio real, com sua beleza geométrica apontando uma diferença fundamental: onde na América havia uma relação de sinergia do homem com o meio, na Europa essa relação é de dominação da natureza pelo homem.
Assim como em toda obra poética, Malick nos convida com O Novo Mundo a ampliar nosso olhar, buscando ultrapassar nossa condição humana em busca do sublime presente em cada detalhe. Em um mundo sobrecarregado de imagens, Malick nos devolve a virgindade do olhar.

3 Comments:

Blogger Cléber Eduardo said...

Não vejo diferenças entre minha relação-apreensão do filme e a exposta no texto, mas, como de cara há uma oposição entre negação da modernidade godardiana pelo Malick e sua filiação a uma continuidade de Murnau, talvez fosse o caso de aqui ou lá na página avançar um pouco mais nessa herança de Murnau, porque, nos acúmulos e disjunções de fragmentos visuais e sonoros do Malick, eu não vejo negação da modernidade cinematográfica nos fluxos mentais e da natureza.

17/4/06 21:24  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Cléber,

A relação Godard x Murnau que apontei era para contrapor uma certa vertente do cinema no início dos anos 70 (Scorsese, Coppola, De Palma) ao caminho escolhido por Malick, que me parece se referenciar mais ao expressionismo de Murnau, em especial - no caso de "O Novo Mundo" - a filmes como "Aurora" e "Tabu".

Se há modernidade no cinema de Malick (coisa que não nego de maneira alguma, pois o há em cada fotograma) é uma modernidade mais próxima à estética do fluxo de um Apichatpong ou dos recentes filmes de Gus Van Sant - estética a qual, neste caso, ele teria antecipado em quase 30 anos - e não a de um Godard.

Acho que a principal diferença em minha percepção do filme em relação à tua (e à do Calil também) é a de que não vejo esse lado "eco-hippie" que para vocês traz uma fragilidade a "O Novo Mundo". Para mim, seu olhar é igualmente generoso diante do velho (Inglaterra) e do novo mundo (América).

18/4/06 09:45  
Blogger CHICO FIREMAN said...

Acho que Malick filma à antiga, sim. Achei muito boa sua frase final, ela de certa forma sintetiza muito bem o filme.

19/4/06 16:12  

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