16.3.06

O Veneno da Madrugada

O Veneno da Madrugada, de Ruy Guerra, Brasil, 2005 - Cabine

Ruy Guerra é hoje, juntamente com Júlio Bressane, um de nossos cineastas mais radicais e experimentais. Devido a essa característica, seus filmes nem sempre tiveram um grande apelo de público, mas quase sempre encontraram grande repercussão junto à crítica nacional e internacional (Guerra já teve quatro filmes selecionados para o Festival de Berlim – sendo que Os Fuzis e A Queda foram premiados com o Urso de Prata – e três para o Festival de Cannes, incluindo Estorvo, sua adaptação do romance homônimo de Chico Buarque).
Com O Veneno da Madrugada, Ruy Guerra chega a seu 25o longa-metragem e quarta adaptação da obra de Gabriel García Márquez. O romance do escritor colombiano – intitulado La Mala Hora e que precede seu grande clássico Cem Anos de Solidão – relata a vida dos habitantes de um pequeno povoado (governado por um alcaide simultaneamente patético e ameaçador, interpretado no filme por Leonardo Medeiros) que se vê subitamente infestado de bilhetes anônimos que expõem os segredos de seus habitantes.
Em sua adaptação do livro, Guerra dá continuidade ao radical trabalho de linguagem realizado em Estorvo e compõe em O Veneno da Madrugada uma narrativa em “camadas”, onde a mesma história é contada três vezes, com acontecimentos e desfechos diferentes. Ligando as três histórias, uma vidente de circo que parece saída de um filme de David Lynch fala sobre flechas do tempo que são lançadas em diferentes direções. Não se trata neste caso de visões diferentes de uma mesma história (como em Rashomon, de Kurosawa) ou de uma composição onde apenas uma história é verdadeira e as demais são frutos de sonhos ou imaginação. No caso do mais recente filme de Ruy Guerra, cada história é tão verdadeira e real quanto as demais, e se sobrepõem de uma maneira aparentemente impossível e contraditória. Em entrevistas recentes, o diretor afirma ter baseado a construção dramática de seu filme em princípios da física quântica, que permitem que um mesmo evento ocorra simultaneamente em lugares diferentes e com resultados diversos.
Ruy Guerra buscou uma narrativa anti-naturalista para seu filme e apostou na criação de um clima de estagnação e decadência para passar o sentimento dos habitantes dessa cidade imaginária. Para atingir tal resultado, utilizou com precisão as ferramentas a seu dispor: a fotografia de Walter Carvalho prioriza o monocromático, puxando todas as cores para uma tonalidade marrom, desgastada – como a da lama causada pela chuva que assola ininterruptamente o povoado –, e a cenografia e figurino acompanham esse mesmo conceito visual. A trilha sonora é composta basicamente de ruídos de cena amplificados e os diálogos foram todos dublados, nem sempre pelo mesmo ator que interpreta o papel.
Tais opções criam uma resistência inicial no espectador acostumado a uma narrativa mais tradicional e esse será um dos grandes desafios do filme junto ao público, desafio esse com o qual Ruy Guerra já está acostumado, por ser um dos poucos diretores mais fiéis à linguagem que desenvolve do que aos ditames do mercado.
Obra radical e perturbadora, Veneno exige do espectador um despir de hábitos e um mergulho profundo na experiência de um artesão do cinema. Embora não atinja a pegada e maestria de Estorvo, trata-se de um dos melhores exemplares de cinema autoral produzido no Brasil nos últimos anos.

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Muito boa visão do filme, em especial a idéia de camadas sendo descascadas. É por aí. Vi o filme numa madrugada na Mostra de Tiradentes, estava cansado e meio com sono, mas consegui acompanhar bem e captar algumas idéias. Quero rever em horário mais propício, mas desde já nota-se ser um trabalho de extrema ousadia do Guerra, novamente...

18/3/06 00:56  
Blogger Marcos A. Felipe said...

Os Fuzis é o melhor do cinema novo. Num tem Deus e o Diabo, Vidas Secas, Aruanda ou o que quer que seja que bata esse filme de Guerra. Fiquei muito tempo com Os Fuzis na cabeça - uma arma na mão. Aquela fotografia que estoura, mais que um fuzil, a percepção de cada espectador, rompe por completo com o neo-realismo que, de perto, aquele movimento não tem. Infelizmente, não vi o novo de Guerra, apesar de ter visto Estorvo e gostado bastante.

Marcos Aurélio Felipe
- http://focopotiguar.zip.net/

19/3/06 18:22  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Miranda, sem dúvida é filme para se ver mais de uma vez. E só isso já diz muito a seu favor...

Marcos, Veneno dá continuidade ao trabalho mais radical de pesquisa de linguagem dos filmes mais recentes do Guerra, nisso se distanciando de seus filmes da época do Cinema Novo. Mas se você gostou de Estorvo acho que vai mergulhar nesta também.

20/3/06 09:06  
Blogger Ailton Monteiro said...

Apesar de ter detestado ESTORVO, estou doido pra ver esse VENENO DA MADRUGADA.

20/3/06 15:17  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Por que tanto ódio por Estorvo, Ailton?

20/3/06 15:25  
Blogger Ailton Monteiro said...

Acho que o fato de eu ter visto o filme num cinema com o som ruim contribuiu em parte. Aquele ator cubano também é um porre.

21/3/06 15:10  
Blogger Leonardo Mecchi said...

O trabalho de som em Estorvo é fundamental, então sem dúvida você teve uma experiência bem prejudicada em relação ao filme...

21/3/06 15:45  

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