6.1.06

2046 - Os Segredos do Amor

2046, de Wong Kar-wai, Hong Kong, 2004 - Mostra SP/Cabine

Há filmes com os quais desenvolvemos uma relação extremamente pessoal: alguns nos dão a sensação de um reencontro com velhos amigos, por outros nos enamoramos e assim por diante. Nesse sentido, 2046 seria o equivalente cinematográfico a uma amante: insuportavelmente bela, sensual, misteriosa, que parece flutuar em um tempo e espaço próprios.
Se Amor à Flor da Pele continua sendo sua obra-prima, pela plenitude e precisão com que transmite na tela emoções e sensações aparentemente inexprimíveis, neste seu mais recente filme Wong Kar-wai leva ao extremo, ao limite do esgarçamento, não apenas suas obsessões (tempo, memória, espaço, desejo) como os artifícios que utiliza para trabalhá-las (cenários minuciosos, figurinos deslumbrantes, fotografia maravilhosa, trilha sonora envolvente, atuações magnetizantes).
Em Amor à Flor da Pele, Chow Mo-wan apaixona-se por Su Li-zhen (a esposa do homem com quem sua própria esposa lhe traiu), sem nunca consumar esse desejo, e o fantasma desse amor que poderia ter sido continua assombrando-o em 2046, que encerra a trilogia iniciada em 1991 com Days of Being Wild. Dividido entre a história de ficção científica que está sendo escrita por Chow, misto de memórias e desejos reprimidos, e os relacionamentos no qual ele se envolve a partir de seu quarto de hotel, o enredo tem um papel secundário em 2046, abrindo espaço para a imagem, matéria primordial do cinema que Wong manipula com maestria para nos entregar momentos de puro deleite, criando através dela os mais diversos significados e rimas poéticas, como as espirais que ecoam nos papéis de parede, na escrita de Chow, na fumaça de um cigarro, nas silhuetas das mulheres que passam pelo seu quarto e, finalmente, na imagem síntese do filme, a misteriosa escultura que aparece na primeira e na última cena de 2046.
Assim como o cineasta e teórico russo Andrei Tarkovsky, Wong utiliza-se da imagem para esculpir o tempo. Se em um episódio como A Mão (parte do filme Eros) podemos observar a expansão do tempo a ponto de um curta de 15 minutos parecer um longa metragem, em 2046 essa experiência é levada quase ao paroxismo. Com cenas que são praticamente auto-suficientes, a montagem do filme se abstém de acompanhar uma ordem cronológica (nem mesmo para subvertê-la, como fazem alguns filmes ditos “modernos”), mas é antes uma montagem subjetiva – a subjetividade de Chow, onde o tempo é medido em função das mulheres que passam pela sua vida, e, em última instância, do próprio Wong –, atingindo com isso um efeito próximo à suspensão do tempo, com o filme tendendo ao infinito (como infinitas são as possibilidades de combinações entre essas cenas). Isso ajuda a explicar, em parte, a dificuldade de Wong em terminá-lo: a produção do filme durou cinco anos, sua première em Cannes precisou ser adiada – algo inédito na história do festival – e ainda assim a cópia do filme chegou apenas três horas antes da nova sessão, escoltada por policiais e claramente não finalizada, o que levou o diretor a continuar trabalhando em sua edição mesmo após a primeira exibição.
Essa subjetividade temporal se deve ao enfoque na memória não como um lugar de recordação, mas de vivência. Pois Chow vive em função de uma ferida ainda aberta, um amor não consumado, que anos depois continua influenciado seus relacionamentos, como a reação retardada dos andróides de sua ficção futurista. Nessa sua viagem pela memória, Chow se perde, sem ter em que se apegar, sem conseguir diferenciar a obra que está criando de sua própria vida, tentando esticar ao máximo sua permanência nesse espaço da memória para não mais ter que encarar o presente (2046 é, no livro que Chow escreve, um lugar/tempo para onde se vai em busca de memórias perdidas, e de onde nunca ninguém voltou).
Há ainda a noção do “momento perdido”, da crença de que o verdadeiro romance está ligado à sincronicidade na trajetória de duas pessoas. Em Amor à Flor da Pele Chow teve Su Li-zhen por um instante, mas a perdeu. Em 2046 ele nos diz que “de nada adianta conhecer a pessoa certa muito cedo ou muito tarde”, e essa sua incapacidade de agir em sintonia com seus sentimentos o bloqueia a ponto de não desejar mais assumir compromissos, apenas “emprestando” seu tempo às mulheres com quem convive.
O espaço é outra questão fundamental para Wong Kar-wai, não apenas em 2046 mas em toda a sua filmografia. Neste filme, os ambientes freqüentados pelos personagens são sempre diminutos (corredores estreitos, quartos pequenos) e há pouquíssimas cenas externas, demonstrando o isolamento daqueles personagens, fechados em suas próprias dores e recordações. Trabalhando pela primeira vez em cinemascope, formato que utiliza todo o espaço disponível da tela, Wong paradoxalmente limita nosso campo de visão, enquadrando a cena quase sempre através de um obstáculo (uma parede, um objeto), reforçando essa sensação de isolamento do mundo exterior. Apesar desse isolamento, os cenários e figurinos repletos de cores e formas sugerem o turbilhão de sentimentos e emoções que se embatem no interior desses personagens.
O filme lança, enfim, uma grande expectativa sobre o próximo projeto do diretor (The Lady from Shanghai, com presença já confirmada de Nicole Kidman), pois com 2046 Wong Kar-wai atingiu o que parece ser a quintessência da estética em que vinha trabalhando. Ou o diretor muda sua abordagem para o próximo filme, ou corre o sério risco de ficar preso ao próprio estilo que criou.
Independentemente das obras que o sucederem, 2046 é um objeto fascinante, um filme de climas e imagens que permitem infinitas análises e interpretações, como o Aleph de Jorge Luis Borges, onde de cada ângulo que se observa pode-se admirar todo um novo e complexo universo.

5 Comments:

Anonymous Anônimo said...

vai gostar assim de 2046 lá na China viu...

10/1/06 15:57  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Ou, até 2046, lá em Hong Kong mesmo, hehehehe...

Abraços,
Leo Mecchi

10/1/06 16:55  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Carol,

Obrigado pela visita. Irei retribuí-la, com certeza.

27/3/06 11:11  
Anonymous Anônimo said...

olá, leonardo.
Caí no seu blog atrás de uma boa crítica do 2046 e gostei demais do seu comentário. Senti a mesma suspensão do tempo e fui absolutamente capturada pelas imagens. As questões do amor, sua impossibilidade e a importância da cronicidade me fizeram lembrar outra pequena obra prima, o livro Grande Sertão:Veredas de guimarões rosa. Foi lá que pela primeira vez percebi que o tempo é uma elaboração pessoal das experiências.

4/4/06 09:05  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Essa subjetividade do tempo é realmente um tema fascinante, e acho que o cinema é um dos melhores meios para explorá-lo. Isso, claro, quando estamos nas mãos de um diretor de talento com o Kar Wai.

4/4/06 09:43  

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