3.1.06

Reis e Rainha

Rois et Reine, de Arnaud Desplechin, França, 2004 - HSBC Belas Artes

Os rumores sobre a morte do cinema francês têm sido exagerados, e filmes como Caché, de Michael Haneke, Clean, de Olivier Assayas, e Les Amant Réguliers, de Philippe Garrel, estão aí para comprovar não apenas a sobrevivência do cinema francês, como também sua histórica capacidade renovadora (vide a Avant Garde dos anos 20, os clássicos dos anos 40, a Nouvelle Vague dos anos 50/60 e assim por diante). Mas, dos cineastas franceses contemporâneos, aquele que talvez mais bem represente essa nova geração seja Arnaud Desplechin. E seu novo filme, Reis e Rainha, é provavelmente a maior prova de amor – ao cinema e ao público – desse grande cineasta.
Trata-se de uma obra generosa e expansiva, que ama seus personagens sem isentá-los de culpas, pecados ou responsabilidades. Um filme adulto e inteligente sem esquecer o humor e a fluidez, com um grande domínio da linguagem cinematográfica sem deixar essa técnica ser sua razão de ser. Desplechin constrói com Reis e Rainha um belíssimo estudo sobre a família, a paternidade e a hereditariedade, num sentido que transcende o mero drama vivido pelos personagens. E, de quebra, ainda nos presenteia com duas das cenas mais tocantes do cinema em 2005.
A estrutura do filme é relativamente simples: metade dele é focado em Nora (Emmanuelle Devos, atriz fetiche do diretor e ótima neste papel), uma jovem mãe – viúva do primeiro marido, divorciada do segundo e prestes a casar com o terceiro –, gerente de uma galeria de arte, cujo pai está lutando contra um câncer em estado terminal; a outra metade acompanha Ismael (Mathieu Amalric, ator revelado por Desplechin, aqui numa interpretação cativante), o segundo marido de Nora, violinista virtuose e um tanto quanto excêntrico, que se vê internado em um hospital psiquiátrico por solicitação da irmã. E há ainda o epílogo, um presente para nós, espectadores, e para um terceiro personagem em torno do qual a trama evolui em grande parte: Elias, o filho de 10 anos de Nora que foi criado na maior parte de sua infância por Ismael.
Nora está presa a um passado que a atormenta, Ismael tem um futuro incerto. São pessoas egoístas, cada um a sua maneira, debatendo-se contra suas desilusões e medos, buscando no presente uma maneira de amadurecer e aceitar suas responsabilidades. Através de uma câmera curiosa mas sempre respeitosa, acompanhamos a trajetória desses dois protagonistas enquanto interagem com um amplo painel de personagens (no que este filme se aproxima de um certo cinema de P.T. Anderson, como Magnólia), onde se destacam a administradora do hospital onde está internado Ismael, interpretada por Catherine Deneuve, e Louis (Maurice Garrel), pai de Nora.
Desplechin traça uma visão complexa de seus personagens (auxiliado por uma montagem “jazzística”, de colagens e variações em torno dos temas, buscando sempre uma nova faceta, um novo olhar sobre aqueles personagens) e, nesse contexto, não há espaço para uma verdade, um julgamento único sobre aquelas vidas que vemos na tela. Acreditamos saber quem é Nora, para logo depois nos depararmos com um lado desconhecido dela. Temos certeza da decisão que Ismael tomará, mas somos surpreendidos por seu amadurecimento diante de nossos olhos e pelos novos caminhos que isso implica. Não há aqui personagens bons ou ruins, responsáveis ou imaturos, mas tão somente seres humanos, em toda a sua profundidade e complexidade.
A principal questão a perpassar todos esses relacionamentos é a família. Não a família enquanto instituição estabelecida, mas sim uma reconstrução dessa instituição baseada em novos paradigmas: a família por adoção, por opção, por carência ou mesmo a sua impossibilidade. Não à toa, a última cena do filme é o pequeno Elias desenhando sua nova e possível árvore genealógica.
Mas a questão da hereditariedade, da paternidade, transcende o roteiro e é trabalhada também na relação do diretor com seu filme, e deste com a cinematografia da qual faz parte. Pois Desplechin trata o filme como a um filho, amando-o e criando-o para o mundo, para o espectador, e não para si próprio. Pois se trata de uma obra que não esconde seu desejo de ser acessível, de ser amada pelo público, embora exija dele uma entrega semelhante à do diretor e seus atores, entrega essa que será devidamente recompensada ao final da projeção. Da mesma forma, o diretor não tenta manter um controle absoluto sobre o filme (embora seu controle seja admirável), mas, ao contrário, quer que o filme fuja de certo modo à sua influência, que o ultrapasse e cresça até transbordar, como obra plena e independente, pela tela. O mesmo acontece com o filme, que não nega sua filiação à Nouvelle Vague, em especial a de Godard, mas o assume como uma herança adquirida (da mesma forma que um filho nasce com uma fisionomia que remete aos pais) e subverte seus preceitos – a iluminação naturalista, o uso de intertítulos, a montagem que se faz visível, os personagens sendo entrevistados pela câmera, a pontuação das cenas pela música feita de uma maneira não-convencional – utilizando-os não em sua forma original, revolucionária, mas para desenhar um drama claro e acessível.
O filme possui uma infinidade de camadas acessíveis ao público, que pode ir do puro entretenimento à mais profunda reflexão. E é nesse equilíbrio entre o erudito e o popular, entre o desafio e a diversão, a grandiosidade e o cotidiano, que o filme caminha. Desplechin nos entrega uma obra pulsante, transbordando de vida, um filme que aposta na capacidade do cinema de captar a vida em toda sua plenitude e, ao nos devolver esse retrato, permitir enxergar a grandeza do cotidiano.