26.1.06

Crime Delicado

Crime Delicado, de Beto Brant, Brasil, 2005 - Frei Caneca Arteplex

De uma coisa Beto Brant não pode ser acusado: acomodar-se a uma fórmula que lhe consagrou. Com seu mais recente filme – Crime Delicado, que tem dividido a crítica nos festivais e mostras por onde passou –, o diretor rompe com seus trabalhos anteriores (Ação Entre Amigos, Os Matadores e O Invasor, que se utilizavam de cores fortes, câmera inquieta, uma montagem ágil e trilhas sonoras marcantes para retratar a violência) de modo a realizar aqui um filme contido, de contemplação, um estudo sobre a arte – passando pelo teatro, literatura e artes plásticas – e a apreensão da vida através dela. É como se Tarantino resolvesse dirigir Razão e Sensibilidade.
Mas Crime Delicado não é apenas um estudo sobre a arte, sobre quem a faz, vive em função dela, escreve sobre ela ou, em seus momentos mais hilários, sobre os tipos que gravitam em torno dela e derramam suas angústias e expectativas numa mesa suja de bar. O filme é, acima de tudo, uma apologia à paixão e à imperfeição, não apenas na arte, mas em todos os campos da vida.
Para isso, Beto Brant recorreu à arte do instante, do imediato, onde o risco é iminente e o erro, inevitável: o teatro. O filme parte da história de uma paixão entre um crítico teatral apolíneo (interpretado por Marco Ricca, que adquiriu os direitos do livro homônimo de Sérgio Sant’Anna e propôs sua adaptação a Beto Brant) e uma jovem modelo dionisíaca (Lílian Taublib, estreando com coragem no cinema) para expandir o teatral a todo o filme: da mis en scène às atuações, passando pelos ótimos diálogos (em grande parte improvisados pelos próprios atores). A coerência dessa escolha só é rompida quando o filme equivocadamente nega essa construção ao optar, em alguns momentos, pelo jogo de campo e contracampo, estrutura tipicamente cinematográfica e contraditória à experiência teatral que se tentava passar, onde a visão do espectador pode flanar livremente por todo o espaço cênico.
Não é que Beto Brant esteja aqui em um terreno que lhe é completamente estranho – o tesão, a tensão e a paixão de seus filmes anteriores continuam presentes, embora de forma latente, e quem se lembra da cena de Os Matadores em que Chico Diaz aguarda ansiosamente o ônibus de sua vítima chegar sabe da magnitude que o diretor consegue atingir com a câmera parada (recurso utilizado na integralidade de Crime Delicado) –, mas com este filme ele consegue alcançar uma delicadeza, ainda que viril, que não podia ser prevista baseando-se em sua filmografia disponível até então.
Confortável no papel passivo de observador e avaliador (não apenas da arte, mas principalmente da sociedade ao seu redor), Antônio Martins (o personagem de Ricca) se vê obrigado, diante de sua abrupta paixão por Inês, a não apenas aceitar a imperfeição, mas a se entregar irrestritamente a ela. Os cenários – sempre internos, noturnos, em ambientes fechados – e a iluminação reforçam a visão de mundo do protagonista, que apreende a realidade como o faz com uma peça de teatro, apontando as falhas em tudo a seu redor, na eterna busca da perfeição. Sem vivência para guiá-lo através desses sentimentos conflituosos (solitário, sua experiência se resume às montagens que analisa, como Confraria Libertina, Woyzeck, O Brasileiro e Leonor de Mendonça, peças que remetem ao desejo e ao ciúmes e que possuem trechos intercalados ao filme), Martins começa a se afundar em suas neuroses, em uma vertigem que o levará ao crime que dá nome ao filme.
Se o novo filme de Beto Brant é imperfeito – e ele o é –, só resta ao espectador mergulhar nessa imperfeição, deixando preconceitos e expectativas para trás, para sair grato e enriquecido dessa experiência. Com Crime Delicado, Brant será tachado por muitos como arrogante ou pretensioso, mas é o preço a ser pago por aqueles que, como o diretor, se arriscam e não aceitam entregar mais do mesmo a um público ávido por ser enganado e arredio ao desafio.

7 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Olá Leonardo..li sua resposta à carta de um leitor, lá no site da Contracampo. Muito sutil a maneira como colocou sua opinião (soube argumentar na medida certa com base em toda aquela nostalgia do leitor e tudo mais). Gostei; Você resumiu todo o meu sentimento com relação a esse filme. Aliás, me agrada mais ler o seu texto a ler alguns da contracampo (alguns são muito técnicos). Abraço.

26/1/06 17:08  
Anonymous Anônimo said...

Leonardo, você não acha que a câmera usada por Brant no filme, parada, pode querer passar a sensação do teatro, quando o espectador está parado na poltrona com a visão limitada?

28/1/06 14:04  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Bi,

Com certeza a câmera parada, em contraponto à sua usual câmera na mão, faz parte dessa estética de teatro que o Beto Brant tentou passar no filme.

O que questiono é o uso do campo e contracampo, que é uma estrutura tipicamente audiovisual, que se utiliza demais em novelas por exemplo, quando duas pessoas estão conversando. A pessoa 1 está falando? A câmera foca nela (campo). A pessoa 2 vai responder? Close nela (contracampo). E isso destoa por não existir na experiência teatral, entende?

Mas é uma das poucas falhas nesse grande filme!

28/1/06 15:44  
Anonymous Anônimo said...

Não vi Crime Delicado, mas confesso que aprecio muito a filmografia de Beto Brant... Realmente, a câmera parada em Os Matadores, quando Chico Dias aguarda o ônibus, é sem limites - mas na cena em questão e, talvez, em Crime Delicado, a magnitute desses momentos brantininianos esteja mesmo na aliança, que no cinema é infindável, entre o ato nobre que a câmera tem de captar a realidade e a arte soberana do ator... In The Mood for Love dá uma aula sobre isso! Abs.

31/1/06 19:23  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Marcos,

Sem dúvida a câmera parada, fixa em um ator, só funciona quando o mesmo tem algo a mostrar, quando o ator consegue transpor a limitação de um enquadramento fixo. Daí tanto diretor optar por uma estética "movimentada", com edição de vídeo-clipe, por medo que o ator/personagem não se sustente sem esses artifícios.

Agora, não entendi muito bem a relação entre Crime Delicado e Amor à Flor da Pele (filme que considero soberbo). Você pode explicar melhor?

1/2/06 14:21  
Blogger Sérgio Alpendre said...

eu não acho ruim o campo/contracampo de Crime delicado. inclusive por ele representar, naquela altura, um ruído estético dentro do que o filme se propunha. acho interessante, precisava rever, mas acho que a concentração de campo/contracampo se dá quando Marco Ricca tenta afirmar sua postura fria e indiferente de crítico, quando a percebe ameaçada. vou rever...

3/2/06 01:06  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Grande Alpendre!

Não vejo um "ruído estético" como algo bom em si. Ele tem que estar justificado.

Agora, se realmente se confirmar que aquela concentração de campo/contracampo (que realmente me saltou aos olhos e incomodou) se dá quando o crítico se sente acuado, tentando impor sua individualidade, se afastando do contato direto com seu interlocutor, aí nesse caso a opção pelo campo/contracampo está totalmente justificada, pois estaria sendo usado para simbolizar um sentimento do personagem naquele momento.

Precisamos rever o filme, mas caso sua hipótese seja confirmada, aí dou o braço a torcer e aplaudo o Brant pela coerência que conseguiu atingir no filme.

Boa observação, Sérgio!

3/2/06 11:02  

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