24.8.05

Lavoura Arcaica

Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, Brasil, 2001 - CineSesc

O livro homônimo de Raduan Nassar, do qual o filme Lavoura Arcaica foi adaptado, é divido em duas partes: A Partida e O Retorno. Essa dialética dos atos, pensamentos e sentimentos do homem diante do mundo perpassa todo o filme de Luiz Fernando Carvalho: família e indivíduo, natureza e religião, sagrado e profano, afeto e opressão, ordem e transgressão, lirismo e loucura, verborragia e silêncio, imagem e palavra, luz e sombra. As interpretações são infinitas, mas o tema é um só: o ser humano, em toda sua plenitude – complexo e contraditório. E nisso filia-se a toda uma linhagem dramática que vai de Édipo Rei a Hamlet, utilizando em sua narrativa um tom trágico, poético e bíblico.
Em torno da mesa – lugar-símbolo da união e comunhão da família, mas também sinal do poder e do profundo abismo que os separa irremediavelmente – conhecemos os personagens desta tragédia, uma família de imigrantes libaneses baseada em uma rígida estrutura camponesa, patriarcal e religiosa. Raul Cortez – impecável, embora durante as filmagens tenha pensado em desistir do personagem, tamanha sua carga dramática – é o pater familias, sentado à cabeceira, imponente, opressor, responsável por longas homilias e pregações antes das refeições. A partir dele, a família se dispõe às laterais da mesa.
“O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava, fosse uma protuberância mórbida pela carga de afeto”. Sentado à direita do pai todo-poderoso está Pedro (“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”), o primogênito que é encarregado de resgatar André, o filho pródigo e protagonista de Lavoura Arcaica, que com sua partida e posterior regresso inicia a desintegração desse núcleo familiar como um câncer, contagiando todo o galho esquerdo até a inevitável implosão dessa estrutura.
André, densamente interpretado por Selton Mello, personifica o dilema primeiro dessa família: “se o pai no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”. Vive dividido entre o desejo de ser amado, ter seu lugar à mesa da família e a ânsia por uma individualidade que lhe é negada (a família enquanto instituição plena e una só é possível através da anulação da individualidade de suas partes) e que lhe permitiria a satisfação de seus desejos impetuosos. “Quero ser o profeta de minha própria história”, proclama André. Incapaz de conter essa pulsão de destruição, André opta por exilar-se, como um leproso desejoso de poupar a todos da contaminação.
O filme inicia-se nesse reencontro entre os dois irmãos, quando Pedro e o espectador irão descobrir, a duras penas e de modo tortuoso, os motivos que levaram André a essa reclusão. A história é contada através de flashbacks motivados pelas explanações de André, que mais lançam sombras do que luzes sobre os fatos, utilizando-se de meias-palavras, como se a origem de seus dilemas e sofrimento fosse complexa e ramificada demais para ser tratada de uma forma direta. A fotografia de Walter Carvalho ilustra esse espírito perturbado e perturbador de maneira brilhante, através de um jogo magistral entre luz e sombra, trabalhando com enquadramentos ora exuberantes, ora morbidamente deformados.
Luiz Fernando Carvalho toma o tempo necessário, tempo esse que é um dos temas principais do livro, para desfiar de forma belíssima essa história diante de nossos olhos. O filme dura quase três horas e exige do espectador o mesmo grau de imersão e entrega que foi exigido dos atores, que durante dois meses se refugiaram em uma fazenda, vivendo a rotina dos camponeses e agindo segundo seus papéis na família, além de terem oficinas sobre os diversos temas do filme (Leonardo Boff, por exemplo, trabalhou com os atores a questão da religiosidade).
O resultado é uma experiência artística radical, onde o diretor nos leva a sentir, mais do que entender, através de um admirável embate entre imagem e palavra, a complexidade dessa rede de relacionamentos familiares, a profundeza da psique humana e as reações do espírito humano a um ambiente repressor e arcaico.
Na época de seu lançamento, o filme foi ora tratado como o marco-zero de um novo cinema brasileiro ora detratado como um filme pedante. Em ambos os casos, tentava-se enquadrá-lo numa visão particular do que deveria ser o cinema brasileiro. O fato é que, passados quatro anos de sua estréia, Lavoura Arcaica continua sendo um exemplar ímpar dentro da cinematografia brasileira, uma obra completa, plenamente justificável em si.

1 Comments:

Blogger Bazófias e Discrepâncias de um certo diverso said...

Olá Leonardo, tudo bem?
A respeito do filme "Lavoura Arcaica", um certo dia procurei em listas na internet um bom filme para baixar. Este filme era mencionado por algumas pessoas como um dos filmes preferidos. Devido a longa duração, encontrei na internet fragmentado em duas partes. Ontem assisti a primeira parte, e não consegui terminá-lo ontem. Realmente, é de um primor considerável. Tanto é que não consegui terminar pois considerei o filme "forte" em demasia: rolou até um certo mal-estar. Apesar da dificuldade que estou em saboreá-lo com certeza, já está entre os filmes mais intrigantes que eu já assisti (mesmo que ainda não terminei). Abraço

12/4/09 23:18  

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