8.8.05

Exílios

Exils, de Tony Gatlif, França, 2004 - HSBC Belas Artes

De uma coisa Tony Gatlif não pode ser acusado: desconhecer o assunto que resolveu abordar neste filme. Argelino radicado na França, o diretor demorou 43 anos e 13 longas metragens para desafiar os 7.000 km que o separavam de sua terra natal e filmar esta migração ao inverso, esta busca pelo seu passado e suas raízes, a ponto de ter declarado que “o filme não nasceu de uma idéia, mas do desejo de mergulhar em minhas próprias cicatrizes”.
E é no corpo, e em suas cicatrizes, que o diretor constrói seu relato. “O filme delimita a sensualidade dos corpos. Dos corpos que se exploram ou se evitam, tocam-se ou agarram-se. Dos corpos que transpiram, tensos ou lascivos, que se contam pela pele e suas cicatrizes”, diz Gatlif.
Exílios começa com os créditos sendo “tatuados” nas costas de Zano (filho de colonizadores franceses que, com a guerra da independência argelina, tiveram que voltar às pressas para a França) enquanto sua namorada Naïma (filha de imigrantes árabes que renegaram suas origens a ponto de seu nome ser a única palavra árabe que ela conhece) dança nua ao fundo. Os corpos, embora belos, possuem várias cicatrizes (Zano possui queimaduras do acidente que matou seus pais enquanto Naïma opta por esconder a origem das suas), somatizações dos traumas e histórias do desraizamento desses corpos.
É com um ritmo carnal, sensual – determinado pela maravilhosa trilha sonora, composta em sua maior parte pelo próprio diretor, que mistura temas árabes e ciganos de maneira envolvente – que o diretor vai relatar a viagem dos dois em busca dessa raiz esquecida. Infelizmente, nem tudo no filme funciona tão bem quanto a fluidez da viagem e a sonoridade que a acompanha, a começar pela característica pela qual o filme foi premiado em Cannes.
Temos aqui no Brasil, país do futebol por excelência (ou por sina, dependendo da interpretação), a expressão de que bom árbitro é aquele que passa despercebido ao longo da partida. É possível traçar uma analogia semelhante na relação entre o diretor e sua obra. Um diretor que faz com que sua presença seja constantemente notada ao longo do filme até pelo espectador mais leigo – através de cenas com composições exageradamente trabalhadas e enquadramentos complexos e cheio de malabarismos – em detrimento da história que está contando, pode ser considerado um bom diretor? O Festival de Cannes, ao premiar Tony Gatlif por este filme com a Palma de Melhor Direção em 2004, afirmou que sim. Mas a partir do momento que esses artifícios deslocam a atenção do espectador da história para a estrutura que foi montada para contá-la – e não sendo esta a intenção principal do filme, como não o é no caso de Exílios – o filme, e conseqüentemente o espectador, saem perdendo com esse virtuosismo desnecessário.
Também no desenvolvimento da trama o diretor opta por soluções questionáveis, como a edulcoração do retorno desses dois filhos pródigos à sua terra natal. Tal viagem de autoconhecimento realizada pelos personagens dificilmente terminaria com um tranqüilo caminhar de mãos dadas ao por do sol, mas antes levantaria toda uma série de novas questões, conflitos e contradições que sequer foram arranhadas pelo roteiro, assim como o choque cultural inerente a tal experiência foi caricaturalmente apresentado e inconseqüentemente resolvido no dilema de Naïma entre usar ou não um xador ao chegar à Argélia.
Ficamos assim com um filme que, embora possua imagens belíssimas e tivesse o potencial e as condições de se desenvolver num digno estudo de um dos maiores dilemas da Europa atual, acaba ficando pelo caminho, assim como muitos dos exilados retratados pelo filme.

6 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Eu saí frustrada do filme. Acho até que ele começa bem, mas depois descamba. Ele acaba colocando questões importantes/interessantes no fim e não as resolve ou revela por inteiro pra gente. Me senti traída.

Por exemplo, o que a menina descobriu ali naquela sessão de "umbanda" que tem a ver com o passado dela, o que a levou a entrar no clima daquele jeito? Isso, pra mim, não é deixar por conta do espectador, mas sim de uma obra incompleta.

Ele intensifica muito a questão do incômodo dela com seu passado no fim do filme, mas não desenvolve a questão.

Ah! O pior é o ator. Que coisa mais bizarra ele na sessão de "umbanda", parecia mais estar curtindo um som numa balada que qualquer coisa. E não é assim que as coisas funcionam, não é qualquer um que vendo a sessão começa a "receber", isso é uma viagem do roteiro, pois em nenhum momento ele seque insinuou ligação do garoto (ator principal) com essa religião.

Totalmente brochante a atuação dele no filme todo.

14/8/05 09:59  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Primeiro é preciso notar que as motivações e reações a essa viagem são bem diferentes nos dois personagens. Enquanto Zano é quem propõe a viagem, se interessa em buscar essa origem, se emociona ao voltar à terra natal etc, Naïma nunca se mostrou muito interessada em traçar esse percurso. Ela reclama no começo da loucura e impetuosidade da empreitada, sofre ao ver nas mulheres árabes um espelho contraditório da mulher que ela é, mas ao mesmo tempo diferente dela mesma, e por aí vai.

Naïma não queria empreender essa viagem: aprendeu com o pai a renegar a cultura árabe, a partir do esquecimento da língua ("minha pátria é minha língua"), e por isso, ao invés de ter um reencontro redentor com seu passado como o teve Zano, ela sofre com essa imersão, como o trauma de um novo parto, alegorizado no ritual final do filme. Esse é o primeiro ponto que é necessário ter em mente.

Depois, é importante lembrar que aqueles personagens simbolizam toda uma geração de imigrantes árabes na Europa, que hoje estão tendo sua identidade e direitos requestionados, à sombra da expansão da comunidade européia e da xenofobia amplificada pelo terrorismo. A explicitação dos traumas de Naïma iria trazer uma individualização de cicatrizes que na verdade são várias, diversas e de todos os árabes que se encontram naquela situação.

14/8/05 19:51  
Anonymous Anônimo said...

Então talvez ele não devesse ter tocado nesse assunto de forma tão visível só no fim do filme.

Se o diretor não quisesse desenvolver o assunto, não deveria tentar deixar no ar dessa maneira. O que ele fez não foi como Godard, que deixa as coisas no ar e te faz pensar. Não, ele simplesmente deixou uma lacuna.

Entendo que a visão dela sobre a viagem era diferente da dele, isso fica claro, mas ele não desenvolve muito esse lado dela durante a viagem deles, tocando mais na visão do cara e, de repente, no fim do filme, faz o inverso, entende? De uma hora pra outra. Parece que faltou que as duas histórias corressem juntas durante toda a viagem, mas não foi assim.

15/8/05 08:18  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Nisso eu concordo contigo. Ele devia ter se apegado mais à personagem interpretada por Lubna Azabal (que sem dúvida tem uma interpretação muito mais marcante e convincente que Romain Duris como Zano), equilibrando as duas personagens na história.

É por esse e outros motivos que disse que o filme acaba ficando pelo caminho, não desenvolvendo o potencial que tinha.

15/8/05 11:04  
Anonymous Anônimo said...

Bom, quero deixar registrado aqui que concordo com o que você disse a respeito do filme. O potencial dele era infinitamente maior que o resultado que vi na tela. Mas a saga pela busca da identidade em si achei que foi tramada de uma maneira extremamente intrigante. E o filme ainda nos serve também de viagem virtual a terras e culturas que talvez jamais conhecêssemos não fosse por Gatlif.

15/8/05 18:26  
Blogger Leonardo Mecchi said...

A experiência e contato com mundos e culturas, reais ou imaginários, aos quais jamais teríamos acesso de outra forma é uma das coisas mais fascinantes em relação ao cinema, como no caso de Camelos Também Choram e a cultura mongol.

No caso específico de Exílios, por tratar de uma cultura à qual já temos um pouco mais de acesso, principalmente devido aos conflitos no mundo árabe, o que me deixou mais intrigado foi o ritual final, que jamais imaginaria possível em um meio muçulmano. Alguém sabe do que se trata aquilo?

15/8/05 23:00  

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