13.8.05

Sin City

Sin City, de Frank Miller e Robert Rodriguez, EUA, 2005 - Cine Morumbi

Sin City, o filme, não é uma revolução como tem sido proclamado aos quatro ventos, mas sim uma evolução, e mais de ordem cronológica do que de uma escala de valores. Trata-se de um filme que se baseia numa HQ que se baseou num gênero cinematográfico (o filme noir) que por sua vez nasceu da literatura (o romance policial).
Muito se disse que a partir de Sin City nenhuma outra adaptação dos quadrinhos para o cinema poderia ser realizada sem pagar tributos a este filme. Porém, como é sabido, a natureza trabalha com várias linhas evolutivas simultâneas, e algumas delas acabam num beco sem saída. Apesar de um belo espécime em muitos sentidos, Sin City não é um marco do cinema e, à parte o desenvolvimento tecnológico, não deverá servir de modelo para muitos outros filmes além de suas duas já programadas continuações (em 2006 e 2008).
Trata-se de um clássico exemplo daqueles filmes que, mais cedo ou mais tarde, alguém teria que fazer. Assim como Gus Van Sant assumiu para si a responsabilidade de refilmar Psicose, do mestre Hitchcock, quadro-a-quadro e Alexander Sokurov desafiou o bom senso realizando com A Arca Russa o primeiro filme de longa-metragem em um único plano seqüência, Robert Rodriguez dirigiu a mais fiel adaptação de uma história em quadrinhos jamais feita, utilizando as próprias HQs de Frank Miller como storyboard para o filme. Entretanto, a fidelidade por si só, exceto em um relacionamento, não constitui mérito algum e é necessário analisar o que foi feito a partir disso. E neste caso, o que temos é um filme que, muitas vezes, peca pelo próprio excesso de fidelidade ao original.
Sin City, a HQ, tornou-se uma graphic novel cultuada por vários motivos: o tratamento sofisticado dado aos traços e texto, seu belo visual noir, pelos enquadramentos cinematográficos e pela criação de um universo sombrio, violento e amoral. Ao transporem literalmente a obra para o cinema, Miller e Rodriguez acabaram caindo em uma armadilha. O visual impactante está lá presente, graças à maestria de Rodriguez no uso da mais moderna tecnologia digital disponível (cortesia de sua experiência com a série infantil Pequenos Espiões) e dos belos enquadramentos da HQ original de Frank Miller, e nisso o filme é realmente impressionante. Entretanto, como é da própria natureza do cinema o movimento que Miller buscava simular com seus traços, depois de um tempo esse visual acaba se tornando exagerado, cansativo, assim como o ritmo frenético imposto pelos diretores, bem diferente da leitura de uma HQ, onde se toma o tempo necessário para apreciar os desenhos, detalhes e a disposição gráfica disso tudo nas páginas. Da mesma forma, os diálogos de Miller, quando narrados em off ao invés de lidos, perdem em impacto e ironia. Ao ignorar tudo isso, ignora-se um dos grandes prazeres que diferenciam uma graphic novel de outros tipos de expressão.
Já em relação à violência explícita, também aí o filme perde o impacto que a HQ causou, simplesmente porque desde o Cães de Aluguel de Quentin Tarantino (não coincidentemente lançado apenas um ano depois do surgimento de Sin City, a HQ) essa temática já vem sendo tratada, com maior ou menor sucesso, por uma infinidade de filmes e diretores. E mesmo o recurso de amenizar as reações a tal violência excessiva, através da fotografia monocromática, também já foi utilizado pelo próprio Tarantino, na antológica cena de Uma Thurman contra os Crazy 88 em Kill Bill.
À parte a personificação das mais diversas fantasias masculinas (Carla Gugino como uma estonteante policial lésbica que por acaso fica passeando nua pela casa, Jessica Alba como uma inocente e curvilínea stripper, entre outras), o que o filme tem de melhor já estava presente na graphic novel de Frank Miller e não é mérito próprio, exceto por uma honrada exceção. E não à toa, a exceção acaba sendo a melhor cena do filme: aquela dirigida pelo próprio Tarantino, que foi convidado pelo amigo Rodriguez em sua tentativa de convertê-lo para as supostas maravilhas do cinema digital. Em uma rápida participação, Tarantino consegue inserir o seu estilo pessoal e inconfundível, não apenas mantendo a fidelidade ao universo no qual está trabalhando mas enriquecendo-o com sua contribuição. E isso sim é uma adaptação fiel ao espírito de Sin City. Caso contrário, nada como o prazer de ler direto do original.

9 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Você fala que o ritmo frenético do filme tira um dos maiores prazeres que se pode ter ao ler um graphic novel, mas, mais abaixo, você mesmo fala que é um tipo de expressão. Pois então, se é um tipo de expressão, não pode ser reproduzido da mesma forma em outro tipo de expressão (o cinema), que por sua vez tem suas características e não pode ser reproduzido por outro modo de expressão.... Com isso quero dizer que não reproduzir o prazer dos detalhes e da leitura lenta não é um desmérito do filme, na minha opinião.

13/8/05 13:50  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Concordo contigo que, como formas de expressão distintas, é impossível transpor na integralidade as características de uma à outra. E é justamente esse o ponto. O que se tem falado do filme e, principalmente, como o filme tem se vendido, é que trata-se da mais fiel adaptação de uma obra de HQ para o cinema, que é como ver as páginas da HQ sendo viradas na sua frente numa tela gigante, e é só. Como se isso bastasse para enquadrá-lo (sem trocadilhos) como um marco na história do cinema. E o que tento mostrar é que o filme não é como a HQ (até pelas diferenças inerentes às duas linguagens) e tampouco essa suposta fidelidade basta por si só.

Além disso, e mais especificamente em relação ao ritmo frenético, até uma montanha russa precisa de altos e baixos para dar emoção (a não ser que o próprio ritmo seja o objetivo do filme, como no caso de Corra Lola Corra, que está mais para um daqueles elevadores de queda livre do que para uma montanha russa). Se você entra numa espiral de sadismo e mutilação de 127 minutos de duração, dilui-se o impacto e perde-se o efeito. Sin City, a HQ, também não possuia muitos tempos mortos, mas como disse, a própria especificidade da linguagem da HQ já fornecia ao leitor esse respito necessário.

Logo, se a principal razão de ser do filme é sua fidelidade ao original, e se ele ignora essas questões próprias da transposição de uma linguagem para a outra, acredito sim que seja em demérito do próprio filme.

14/8/05 08:19  
Anonymous Anônimo said...

Mas talvez a fidelidade da qual se fala não é essa que você coloca, mas sim fidelidade às características, personalidade das personagens, do enquadramento e dos princípios, ou falta deles, da história (e mais uma vez das personagens), capisce?

Quando se fala de adaptação de um livro e fidelidade, fala-se disso, não? Se ele não tivesse sido fiel teria, por exemplo, transformado um dos "heróis" em apenas "heróis" e não em "monstros-heróis" como vemos no filme.

14/8/05 09:52  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Como eu disse anteriormente, o filme pode até ser fiel em alguns dos pontos que você colocou, mas a fidelidade ao original não justifica por si só um filme. A relação direta que está sendo colocada pela mídia especializada de "mais fiel adaptação já feita = ótimo filme" não existe a priori.

Se O Último dos Moicanos tivesse sido adaptado literalmente do livro como Sin City foi feito, seria um porre. O que estou tentando é uma discussão para além da questão da fidelidade ou não ao original, buscando os méritos próprios do filme.

Capisce?

14/8/05 19:15  
Anonymous Anônimo said...

Eu não entendi o final quando você fala da participação do QT. Qual a cena que na sua opinião enriquece o filme?

15/8/05 08:24  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Robert Rodriguez convidou Quentin Tarantino para dirigir uma das cenas de Sin City, na tentativa de convertê-lo ao cinema digital. Recebeu o valor simbólico de US$ 1 pela direção, retribuindo assim o favor de Rodriguez, que foi o responsável pela trilha sonora de Kill Bill 2 (o que talvez explique porque a trilha do Vol 2 não chega aos pés daquela do Vol 1) pela remuneração de US$ 1.

A cena que ele dirigiu foi aquela em que Dwight (Clive Owen) tem um diálogo no carro com um, digamos, profundamente ferido Jackie Boy (Benicio Del Toro). Lá é possível distinguir claramente as características de Tarantino (os diálogos afiados, o humor negro e irônico etc) sem que com isso ele tenha sido infiel ao universo de Sin City.

15/8/05 10:59  
Anonymous Anônimo said...

Olá Leonardo. Soube do seu blog através do Comodoro e gostei muito. Convido vc a conhecer o meu espaço na web. Abs.

17/8/05 10:52  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Olá Paulo! Valeu pela visita. Irei retribui-la.

Não sabia que o Carlão tinha divulgado meu blog no site dele. Coisa fina...

17/8/05 11:25  
Anonymous Anônimo said...

pois é. ele tb anunciou o meu há algumas semanas. Aguardo sua visita. Abs.

17/8/05 13:32  

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