28.7.05

A Condessa de Hong Kong

A Countess from Hong Kong, de Charles Chaplin, EUA, 1967 - Film&Arts

Um filme escrito e dirigido por Charles Chaplin (que ainda produziu, compôs a trilha original e aparece numa ponta), com Marlon Brando e Sophia Loren nos papéis principais pode parecer uma obra-prima à priori, mas infelizmente não existe uma fórmula tão simples para isso.
Uma informação pode ajudar a entender o sentimento contraditório que A Condessa de Hong Kong suscita: o filme é baseado num roteiro originalmente escrito em 1938. Tendo sido produzido quase 30 anos depois e sendo lançado no mesmo ano em que foram às telas filmes como A Bela da Tarde (de Luis Buñuel), Bonnie & Clyde (de Arthur Penn), A Primeira Noite de um Homem (de Mike Nichols) e Week-end à Francesa (de Jean-Luc Godard), o filme parece estar consciente de pertencer a uma época que foi deixada para trás e já não possui o mesmo vigor de seus tempos áureos.
Marlon Brando interpreta Ogden Mears, um político herdeiro de um império petrolífero em viagem num cruzeiro, e Sophia Loren é Natascha, uma órfã russa criada em Hong Kong que se esconde na cabine de Ogden para fugir à América. A história se desenvolve entre as brigas do casal (que naturalmente acaba se apaixonando) e as gags causadas pela necessidade de esconder a presença da passageira ilegal.
O filme dialoga com as screwball comedies da década de 30, como Levada da Breca, de Howard Hawks, com Cary Grant e Katharine Hepburn, que inclusive foi lançado no mesmo ano em que Chaplin escreveu o roteiro de A Condessa de Hong Kong. Marlon Brando e, em especial, Sophia Loren respondem bem às exigências desse tipo de comédia, mas a imponência natural desses atores causa uma sensação de estranhamento diante das situações a que são expostos.
Não é preciso ler os créditos para saber que se trata de um filme de Charles Chaplin, apesar de ser seu primeiro, e único, filme em cores. Seu estilo, principalmente o das primeiras comédias, é facilmente reconhecível em diversos momentos que rendem uma boa e despretensiosa diversão.
Embora Luzes da Ribalta seja o filme que mais se aproxima do canto do cisne de Chaplin, A Condessa de Hong Kong acabou sendo sua última produção e recebeu duras críticas na época, justificáveis talvez em alguns de seus argumentos, mas não em sua intensidade. Apesar dos bons momentos, o filme nos deixa uma leve tristeza e melancolia, como quem assiste o outono de um espetáculo que, sabemos, não irá se repetir.

26.7.05

Cachorro

El Perro, de Carlos Sorin, Argentina, 2004 - HSBC Belas Artes

Embora tenha seu nome vinculado à nova onda do cinema argentino, Carlos Sorin estreou na direção ainda na década de 80, tendo sido premiado no Festival de Veneza com seu primeiro longa-metragem (La Película Del Rey) e trabalhado posteriormente com Daniel Day-Lewis em Eversmile, New Jersey. A esse filme, seguiram-se 13 anos de reclusão na publicidade, até o retorno consagrado com Histórias Mínimas, que recebeu mais de 20 prêmios internacionais. Cachorro veio à luz dois anos depois e a comparação com seu antecessor era inevitável. Infelizmente, para o filme e para os amantes do bom cinema, Cachorro só tem a perder com essa comparação.
Mesmo não sendo uma obra-prima, Histórias Mínimas é um filme respeitável. Com seu minimalismo já explicitado no título, transforma em personagens principais aqueles que estariam fadados a serem eternos coadjuvantes, em três histórias delicadas e repletas de afeição que se cruzam no belíssimo cenário da Patagônia. Já Cachorro parece um rascunho para uma das histórias de Histórias Mínimas, com os personagens ainda não completamente desenvolvidos, a trama cheia de pontas soltas e a música inundando em excesso todas as cenas.
Temos novamente a história da relação entre um homem à margem da sociedade em que vive e seu cachorro. No caso de Histórias Mínimas era o idoso Don Justo em busca de seu cão vira-latas em uma das tramas do filme. Em Cachorro, Juan Villegas, após ser demitido de seu emprego de 20 anos em um posto de combustível, recebe como agradecimento por ter rebocado e consertado o carro de uma jovem senhora um Dogue Argentino de pedigree. O cachorro que dá título ao filme, embora pareça num primeiro momento mais um fardo que o personagem terá que carregar, revela-se na realidade uma solução para seus problemas, uma vez que descobre tratar-se de um belo espécime reprodutor além de um forte competidor em apresentações e competições para cães, mercado que movimenta grandes recursos, "mesmo em um país em crise como a Argentina", como nos informa Walter Donado, personagem que irá auxiliar Villegas na procura por lucros com o cachorro.
Um filme que opta conscientemente por abrir mão de grandes acontecimentos para focar em pequenas histórias depende sobremaneira da empatia de seus personagens e de momentos que transcendam sua simplicidade para revelar algo mais profundo e universal. E é justamente nesses pontos que Cachorro falha. Trabalhando mais uma vez com não-atores, Sorin não teve a mesma sorte que teve com Antonio Benedicti, que personificou um inesquecível Don Justo em Histórias Mínimas. Embora Juan Villegas (que emprestou seu nome ao personagem) não comprometa em sua atuação, tampouco consegue atingir o grau de empatia necessário ao personagem. Adicione-se a isso uma história que raramente supera o trivial e previsível e temos um filme que não diz muito a que veio.
Embora tenha apontado um caminho promissor com Histórias Mínimas, que poderia render belos filmes se mais bem trabalhado e explorado, o diretor errou a mão neste último, passando do minimalista para o pouco interessante. Na tênue linha entre a criação de um estilo e o acomodamento nele, Sorin parece estar pendendo para este último.

22.7.05

Camelos Também Choram

Die Geschichte vom weinenden Kamel, de Byambasuren Davaa e Luigi Falorni, Alemanha/Mongólia, 2003 - Reserva Cultural

Em 1922 o diretor Robert Flaherty realizou o que é hoje considerado o primeiro documentário de longa-metragem da história: Nanook, o Esquimó, que acompanhou durante um ano a vida de uma família de esquimós no Ártico. O filme teve uma grande repercussão na época e atraiu um público considerável, ávido por conhecer uma cultura tão diferente, mas foi alvo de duras críticas por ter situações claramente re-encenadas para as câmeras. Flaherty defendeu-se afirmando que, muitas vezes, para mostrar a verdade das coisas um diretor precisa influenciar o meio que está retratando e com isso antecipou em algumas décadas a eterna discussão sobre a possibilidade de se captar uma realidade sem alterá-la.
Em Camelos Também Choram, Davaa e Falorni bebem assumidamente dessa fonte para trazer ao público ocidental uma outra cultura distante: os nômades da Mongólia. Porém desta vez o relato vai além da pura etnologia exótica e atinge algo mais profunda e primitivamente humano.
Tudo começou em uma escola de cinema em Munique, na Alemanha, quando Byambasuren Davaa contou a seu colega de classe, o italiano Luigi Falorni, sobre uma tradição dos nômades de sua terra natal. Segundo essa tradição, quando um camelo recém-nascido é recusado pela sua mãe, que assim coloca a vida do filhote em risco ao não alimentá-lo, um ritual deve ser realizado: um músico é chamado para, com sua música, emocionar a mãe que, com lágrimas nos olhos, aceita então o pequeno camelo. Os dois jovens cineastas resolvem fazer dessa história o tema de seu trabalho de conclusão de curso e partem para o deserto de Gobi atrás de uma família de nômades para acompanhar durante a temporada de nascimento dos camelos (que curiosamente ocorre ao longo de um único mês). Encontram uma família de quatro gerações que vivem sob a mesma tenda e que prontamente se dispõe a participar das filmagens. O esperado ocorre e, ao dar à luz um filhote albino, a mãe do pequeno camelo o rejeita. O cenário está completo.
Embora a história dos dois camelos e a tentativa de aproximá-los seja o fio condutor de toda a história, o fascinante é o vislumbre da cultura nômade, seu estilo de vida estritamente simples e desprendido, de respeito aos mais velhos e admiração pelos mais novos, de integração e adaptação ao meio em que vivem, sua religiosidade e seu apego aos pequenos e valiosos momentos da vida. O filme todo transborda desses momentos e a própria fotografia e edição do filme parecem refletir esse estilo de vida. Segundo Luigi Falorni, que além de co-dirigir o filme foi também responsável pela sua fotografia e câmera, “os nômades que encontramos vivem e se comunicam de uma maneira extremamente simples e direta. Não conhecem o cinismo, não distorcem ou colocam duplo sentido nas palavras como nós fazemos. Tudo e todos são para eles reais e únicos e portanto, quando estamos entre ele, nos sentimos também nós reais e únicos. É um sentimento maravilhoso, que de certa forma lembra a infância. Eu queria que as imagens refletissem essa percepção naïf do mundo, eu tentei usar a câmera como uma 'janela' para a vida dos nômades”.
Essa percepção naïf do mundo é o que de mais belo o filme nos trás. Não por ser diferente, mas porque ecoa no fundo da cada um de nós, como um chamado primitivo. Uma interpretação fácil, porém errônea, seria apontar que aquele modo de vida seria o “correto” e que nos afastamos dele com a civilização e seus avanços. Entretanto, são esses mesmos avanços (como o cinema, por exemplo) que nos permitem entrar em contato com culturas como essa, analisa-las e tirar seus ensinamentos.
A sabedoria, neste caso, não reside no fato de viverem isolados no deserto junto à natureza, mas sim no modo como contemplam a vida e seus acontecimentos: com a mesma serenidade e humildade com que os camelos fitam o horizonte.

13.7.05

A Vida Marinha com Steve Zissou

The Life Aquatic with Steve Zissou, de Wes Anderson, EUA, 2004 - Cine Segall

Imagine os mundos de Jacques Cousteau e Bob Esponja se cruzando nos sonhos de uma criança de 8 anos. Adicione Bill Murray em mais uma excelente atuação e você terá A Vida Marinha com Steve Zissou, mais novo filme de Wes Anderson (mesmo diretor de Os Excêntricos Tenenbaums).
O filme conta a história de Steve Zissou (Bill Murray), um oceanógrafo-cineasta cujos últimos documentários marítimos andam fracassando tanto quanto seu casamento com Eleanor (Anjelica Huston), a ponto de em seu último filme seu companheiro de longa data Esteban (Seymour Cassel) ter sido devorado por uma criatura que ele batizou de Tubarão-Jaguar. Ao formar uma nova expedição em busca de vingança acaba conhecendo seu pretenso filho (Owen Wilson) e sendo atormentado por uma repórter (Cate Blanchett) que pode ser sua última chance de retomar a fama que já teve.
A Vida Marinha é um caso estranho. Embora não seja um filme que funcione do começo ao fim, você não pode deixar de se apegar a ele em vários momentos, principalmente se deixar de lado a interpretação realista à qual a maior parte do cinema (e aqui não estou me restringindo apenas ao cinema norte-americano) nos habituou. Invariavelmente esses momentos são protagonizados por Bill Murray.
Devo admitir, não sem certa vergonha, que antes de Encontros e Desencontros Bill Murray continuava sendo para mim o eterno Dr. Peter Venkman de Os Caça-Fantasmas. Mas depois da sublime experiência que Sofia Coppola me proporcionou tive a grata oportunidade de revê-lo em Os Excêntricos Tenenbaums, Sobre Cafés e Cigarros, de Jim Jarmusch, e agora A Vida Marinha e posso afirmar que se trata de um dos melhores comediantes em ação atualmente. Sua atuação distanciada, blasé mesmo, consegue paradoxalmente conquistar a total empatia do público para com os personagens que interpreta, personagens esses normalmente em crise ou desiludidos, como quem veio ao mundo, deu uma olhada, não gostou do que viu e agora aguarda pacientemente o momento de ir embora. E isso tudo é feito com um humor sutil, responsável por momentos antológicos como, no caso deste filme, a cena em que demonstra as aplicações do sistema de som acoplado ao equipamento de mergulho por ele desenvolvido. Simplesmente inesquecível.
Para além da atuação de Bill Murray, Wes Anderson trabalha em torno de questões habituais ao seu cinema: a relação entre pai e filho, a desilusão gerada pela defasagem entre o reconhecimento que julgamos merecer do mundo e aquele que ele efetivamente nos reserva, tudo isso trabalhado por uma imaginação extremamente fértil, autoral e incomum no meio em que foi gerado: o mainstream hollywoodiano. O problema é que esse mundo criado por Anderson muitas vezes acaba tornando-se egocêntrico e perdendo a relação e empatia com o público.
Como disse o crítico Roger Ebert, é o tipo de filme que não posso recomendar, mas tampouco desencorajaria sequer por um único segundo alguém a vê-lo. E para nós, brasileiros, ainda há a grata surpresa da trilha sonora composta de versões de Seu Jorge, que também atua no filme, para clássicos de David Bowie.