7.5.07

Maria

Mary, de Abel Ferrara, Itália/França/EUA, 2005 - Mostra SP

Há sentido ainda em se discutir, nos dias de hoje, conceitos como a fé, o sagrado e o divino? Essa parece ser a principal questão de Abel Ferrara com Maria. Para nós, diante do filme que se apresenta na tela, uma única resposta se configura como possível: sim. Hoje, mais do que nunca. Pois se a religiosidade sempre foi um tema fundamental não apenas na obra de Ferrara, mas em toda a história da humanidade, poucas vezes ela foi retratada, ao menos no cinema, de maneira tão pungente, profunda e urgente quanto aqui.
Embora em alguns momentos Maria possa parecer um tanto quanto anacrônico em seu retrato (afinal de contas, não há espaço hoje para um programa de TV que discuta com grandes teólogos e estudiosos a vida de Cristo em horário nobre, como nos apresenta Ferrara em seu filme), isso se dá não por um distanciamento do filme em relação ao mundo, mas por uma espécie de racionalismo exacerbado da sociedade moderna, onde a religiosidade passou a ser vinculada apenas à crença reacionária ou ao fanatismo cego. O universo sobre o qual Ferrara se debruça em seu estudo sobre a fé e o sagrado, entretanto, é colado ao que habitamos, com seus atentados (como o que interrompe a celebração do Pessach de Marie Palesi), conflitos (como os que Ted Younger ignora no monitor de TV, mas que se impõem no ataque ao seu carro), polêmicas e escândalos midiáticos (como os que envolvem Tony Childress e seu filme).
Trata-se de um retrato bastante sombrio da contemporaneidade, para o qual Ferrara parece encontrar uma única causa possível: a soberba do homem que, com seus enormes edifícios cortando o céu de Nova York como verdadeiras Torres de Babel (numa fotografia majestosa da metrópole que só encontra equivalente no cinema atual em Michael Mann), crê prescindir do sagrado em sua vida. Pois é essa mesma soberba que, tal qual Ícaro, será responsável pela queda do homem. É dessa forma que se configura no filme a descida ao inferno de Younger, magistralmente representada pelo túnel que percorre a caminho do hospital, ou a tribulação de Childress diante das imagens de seu próprio filme.
À essa escuridão que assombra a alma humana, que é a mesma escuridão que abre o filme, se contrapõe a luz que invade a tela quando uma pedra é removida para revelar o mistério supremo da fé: o Cristo ressuscitado. Esse jogo de chiaroscuro (que remete às pinturas religiosas de Caravaggio) se estende ao longo de todo o filme, não apenas em sua belíssima fotografia, mas em sua própria estrutura. Construído sobre dualidades (masculino/feminino, morte/vida, humano/divino, descrença/fé), Maria expõe esse homem moderno e descrente como um ser dividido, incompleto e fragilizado, perdido em sua busca por crenças e certezas que o mundo lhe nega. Dessa forma, assim como o teólogo francês Jean-Yves Leloup prega no programa de Younger a união entre o masculino e o feminino para uma experiência plena da vida humana, Ferrara parece indicar que somente a reintegração do homem à sua dimensão divina é capaz de redimi-lo e salvá-lo.
Essa adesão ao divino, entretanto, não se dá de maneira fácil ou indolor, pois depende de uma fé no invisível, no intangível, a mesma fé que faltou a muitos dos apóstolos quando, no filme dentro do filme, Maria Madalena (agora não mais a amante ou prostituta, mas a discípula que, junto com Pedro, dividia o posto de mais próxima a Cristo) trouxe a boa nova da ressurreição. É por isso que, diante do clamor de Younger por perdão (numa fragilidade que o aproxima do filho recém-nascido e seu pranto sofrido na incubadora), a revelação não vem na forma de uma imagem ou visão, mas no silêncio do Cristo na cruz. Não um silêncio impassível ou indiferente, mas um silêncio reconfortante, que se contrapõe à desordem anárquica do mundo. Um silêncio que descortina o mistério do divino, da mesma forma que a pedra que se abre para a luz no início do filme ou o travelling que revela, nas frestas da imagem, o Cristo crucificado.

2 Comments:

Blogger Bruno Drago said...

Fala Léo!

Cara, esse filme é o "Maria cheia de graça" (título pessimo na minha opinião)?

Em tempo, duas sugestões de filmes:

- Marcas da Vida
- Eu me chamo Elizabeth

Abs!

10/5/07 14:35  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Não Bruno, esse que você está falando é de 2004. São dois filmes completamente diferentes...

"Marcas da Vida" eu vi na época da Mostra. Não gosto muito, mas há quem o defenda veementemente. "Eu me Chamo Elizabeth" ainda não vi...

Abraços!

10/5/07 14:45  

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