30.11.05

O Mundo de Jack e Rose

The Ballad of Jack and Rose, de Rebecca Miller, EUA, 2005 - Cabine

Nestes tempos de globalização, uma questão recorrente é a possibilidade de se viver segundo seus próprios princípios, à margem de uma homogeneização imposta mundialmente. Houve um tempo em que a resposta a essa questão era uma só: sim, é possível viver a utopia, aqui e agora. Eram os anos 60, vivia-se a política no dia-a-dia, experimentava-se uma liberdade sem precedentes, drogas eram usadas buscando-se a expansão da consciência e a integração com o outro e comunidades alternativas eram criadas, visando comprovar que era possível ao homem viver em harmonia consigo mesmo e com a natureza.
É numa dessas comunidades que encontramos Jack (interpretado por Daniel Day-Lewis) e sua filha Rose (Camille Belle), ao som do clássico I Put a Spell on You. Estamos em 1986 e os dois são os últimos sobreviventes dessa experiência – como Jack mesmo a define – e ainda vivem sob os mesmos preceitos que o levaram a fundar a comunidade, vinte anos antes, isolando-se de uma sociedade que recusa suas crenças. Os belíssimos cenários e a carinhosa câmera, em alguns momentos quase documental, nos mostram um espaço idílico, com pai e filha vivendo em perfeita comunhão.
Entretanto, esse pequeno paraíso fincado em uma ilha da costa leste americana está prestes a ser contaminado pelo “futuro”, representado neste caso por um empreendimento habitacional de casas pré-fabricadas (ou, nas palavras memoráveis do personagem de Day-Lewis, “lugares para manter a TV seca”). Jack, em seu espírito sessentista, é o que hoje se denominaria um “ambientalista”, e o fato do empreendimento estar sendo construído sobre uma reserva o colocará em pé de guerra com o empresário responsável pela construção.
Mas não é esse o foco do filme, e muito menos o real motivo da ira de Jack. O que está por trás disso tudo é a luta de um sonhador por manter suas crenças, apesar das desilusões e do sentimento de inadequação com seu tempo. Pois Jack é como Ahab (analogia ostensivamente explicitada com o livro de Melville na cabeceira do protagonista), em uma insana perseguição pela sua própria Moby Dick – a esperança de que um outro mundo é possível. Jack está doente, morrendo, e se vê obrigado a encarar suas escolhas e as conseqüências, além de lutar arduamente para manter-se fiel a seus ideais, à sua utopia. O conflito é interno, e não com o mundo exterior.
Tudo se torna ainda mais complexo quando Jack convida sua namorada, juntamente com os filhos, para morarem com ele, o que faz com que os sentimentos ambíguos que existem entre Jack e sua filha aflorem. Pois em sua ânsia de protegê-la (e a si mesmo) do contato com o Outro (“o homem é bom por natureza, é a sociedade quem o corrompe”, já nos dizia Rousseau), Jack acaba construindo uma armadilha onde a única possibilidade para a continuidade de sua utopia está na auto-suficiência de sua relação com a filha, sem moralismos e com todas as implicações que isso traz. Ao deparar-se preso a essa armadilha, Jack se angustia cada vez mais. Daniel Day-Lewis, em sua já conhecida e esperada entrega ao personagem, faz com que ele somatize em seu próprio corpo (o ator chegou a perder 20 quilos para o papel) essas angústias e a derrocada do sonho que pretendeu tornar realidade.
Infelizmente, trata-se de uma ótima história à procura de um diretor. Rebecca Miller (filha do grande dramaturgo Arthur Miller e esposa de Day-Lewis) não consegue neste seu terceiro longa-metragem dar fluidez à narrativa e dificulta a identificação do espectador com seus personagens, algo fundamental para que se possa aceitar suas contradições e angústias e acompanhá-los em suas trajetórias. Com isso, o filme nos mantém distantes durante a maior parte de sua duração, sem nos envolver, apesar das canções de Bob Dylan que permeiam o filme, da ótima cenografia (em especial as casas da comunidade e os floridos jardins) e de uma fotografia precisa.
Mas tal é a força da história que está sendo contada e do drama desses personagens que, apesar das limitações do filme - que não são poucas - as questões suscitadas nos acompanham após o término da projeção. Levando os personagens a situações e decisões extremas, o filme parece nos apontar (em uma cena pungente e tocante) para um final pessimista onde, parafraseando um delicado momento de nossa história recente, o medo vence a esperança, e nada nos resta a não ser capitular e desistir de nossos sonhos, pois o fardo a se carregar ao ser fiel a suas crenças e desejos é por demais pesado e não parece valer a pena. Entretanto, quase num prólogo, a diretora nos concede uma ponta de esperança, uma possibilidade ainda em aberto. Mas talvez já seja tarde. O gosto que fica é da inviabilidade da inocência (“pessoas inocentes são perigosas”, nos diz um dos personagens) e do fim da utopia.
Resta-nos o questionamento sobre nossas próprias escolhas e caminhos. É pouco para redimir o filme, mas é o bastante para nos fazer refletir.

25.11.05

Flores Partidas

Broken Flowers, de Jim Jarmusch, EUA, 2005 - Mostra SP

Há motivos de sobra para se comemorar e se preocupar com Flores Partidas, vencedor do Grande Prêmio do Júri no último Festival de Cannes. Há de se celebrar o fato de Jim Jarmusch, um dos papas do cinema independente norte-americano, voltar em plena forma ao longa metragem, seis anos após Ghost Dog. E também o prazer de acompanhar mais uma interpretação impagável de Bill Murray, que se afirma a cada filme como um dos melhores comediantes da atualidade. Entretanto, o que deixa um gosto agridoce a essa deliciosa iguaria é a sensação de que tanto Jarmusch quanto Murray estejam se acomodando em um estilo que lhes consagrou, sem buscarem inovações ou evoluções dentro de suas respectivas filmografias.
Como em seu filme anterior, o ótimo A Vida Marinha com Steve Zissou, Bill Murray interpreta um cinqüentão que se encontra com a vida estagnada quando descobre a existência de um suposto filho, tendo então que aprender a lidar com essa situação inesperada. Em Flores Partidas, a notícia vem através de uma carta anônima que o levará a procurar suas antigas namoradas e possíveis mães desse hipotético filho, sendo praticamente coagido a isso por seu vizinho e amigo Winston, que nos intervalos entre seus três empregos e o cuidado com os cinco filhos arranja tempo para bancar o detetive na Internet.
Jarmusch cria então uma narrativa cíclica de esquetes e interações que se repetem, um road movie onde praticamente não há movimento, no qual Don Johnston (o personagem interpretado por Murray, cujo nome gera uma série de brincadeiras ao longo do filme devido à semelhança com o do protagonista da série Miami Vice) parte em sua jornada - que é mais uma busca por alguma ligação com o mundo ao seu redor que o tire da inércia e que o traga de volta à vida do que uma real procura pelo filho desconhecido.
O ponto forte do filme é sem dúvida a interpretação de Bill Murray, acompanhado de um rol de atrizes como nunca se viu num filme de Jarmusch (Sharon Stone, Frances Conroy, Jessica Lange, Tina Swinton e Chloë Sevigny). Não podia ser diferente, tendo em vista que Jarmusch escreveu o roteiro do filme tendo Murray em mente desde o começo para o papel principal. Embora não tenha atingido a genialidade de um Bob Harris, personagem que interpretou em Encontros e Desencontros com seu ar blasé e uma perfeita tradução do sentimento de inadequação com o mundo e seus habitantes, Murray continua capaz de construir, com uma atuação que se restringe a olhares e leves variações de expressão, pequenos momentos hilários que valem todo um filme. Já foi assim em A Vida Marinha com Steve Zissou (em especial a cena em que ouve walkman vestido com a roupa de mergulho) e continua neste Flores Partidas, nos encontros com suas ex-namoradas (particularmente na cena do jantar na casa da ex-hippie que virou corretora imobiliária).
Já Jarmusch impõe seu estilo pessoal de reiterações e mantém acertadamente o tom do filme um nível abaixo da comédia tradicional, em sintonia com a interpretação contida de Murray. O diretor escapa do clichê que seria mostrar a vida de cada uma das ex-namoradas de Don Johnston como possíveis caminhos para sua vida caso tivesse feito escolhas diferentes, optando ao invés disso por ressaltar, com bom humor, o mal-estar e a incapacidade de identificação do personagem principal com aqueles que fazem ou fizeram parte de sua vida.
Ao final, fica claro que o filho de Johnston é apenas um McGuffin (termo cunhado por Hitchcock para designar um plot que coloca o enredo em movimento mas que tem pouca ou nenhuma importância para a história propriamente dita) e que o objetivo principal do filme é a jornada do personagem e seu retrato do vazio existencial de nossos dias, deixando o belo final em aberto, pronto para ser preenchido pelas experiências e expectativas do espectador.

17.11.05

Marcas da Violência

A History of Violence, de David Cronenberg, EUA, 2005 - Mostra SP

Depois do ótimo Spider, o diretor canadense David Cronenberg volta com Marcas da Violência à questão da identidade e do passado, temas caros à sua cinematografia.
Entretanto, diferentemente de outros filmes seus como eXistenZ, Videodrome e Scanners, aqui Cronenberg utiliza-se de um estilo de certo modo mainstream, com uma história linear e realista (talvez por não se tratar de roteiro original seu, mas sim da adaptação de uma graphic novel), como meio de discutir as questões de seu interesse.
Embora inicie o filme com um prólogo à Tarantino, é em David Lynch (principalmente o de um Veludo Azul ou Twin Peaks) que Cronenberg parece buscar inspiração ao ambientalizar sua história em uma idílica cidade dos EUA – onde as pessoas se cumprimentam pelo nome nas ruas e que parece saída de um panfleto macartista destacando as benesses do american way-of-life – para, aos poucos, revelar o sórdido por trás da aparente perfeição.
O sórdido no caso responde pelo nome de Tom Stall, um pacato pai de família que, após reagir a um assalto à sua lanchonete e matar dois criminosos, torna-se uma celebridade da noite para o dia e, no processo, passa a ser atormentado por atos que pretensamente cometeu no passado, resgatando as tramas do “homem errado” dos filmes de Hitchcock (em que um cidadão comum é confundido por outra pessoa, o que ocasiona uma série de conseqüências que o tiram de sua rotina e mudam sua vida).
Partindo dessa premissa e brincando com gêneros cinematográficos que vão do western ao noir, Cronenberg trata brilhantemente de questões como a possibilidade do ser humano de alterar sua natureza e a definição da real essência de cada um. De quebra, critica o sadismo de grande parte do público, que busca uma estética da violência nos cinemas (o próprio diretor afirmou que Marcas da Violência é menos um filme sobre a violência do que sobre a maneira como essa violência afeta nossas vidas, o que é perfeitamente ilustrado na ótima cena em que Jack, filho mais velho e pacifista do protagonista, reage de maneira impulsiva e inesperada às provocações dos colegas de escola) e a valorização de um certo “renascimento” pregado pelas religiões fortalecidas por esta era Bush (novamente exemplarmente ilustrada na confissão de Tom Stall à sua esposa Edie no hospital).
Some-se a isso uma trama bem engendrada, uma direção firme e precisa e duas cenas de sexo memoráveis (dignas da obra de quem já filmou cenas como as de Crash – Estranhos Prazeres e com as quais o diretor adiciona complexidade à personagem de Edie, interpretada por Maria Bello, que de outra forma se tornaria uma simples dona de casa vítima dos acontecimentos) e teremos um dos melhores filmes da carreira de Cronenberg e, conseqüentemente, um dos melhores do ano.

11.11.05

Cinema, Aspirinas e Urubus

Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, Brasil, 2005 - Reserva Cultural

Enquanto muitos só destacam a força do cinema brasileiro diante de filmes como Carandiru e 2 Filhos de Francisco (ambos com público em torno de 5 milhões de espectadores), aqueles com olhar mais atento podem afirmar que estão vivenciando um momento ímpar do cinema brasileiro, de uma força singular em sua história e que nada tem a ver com os tão proclamados blockbusters apoiados pela Globo Filmes ou mesmo com a poderosa indústria do eixo Rio-São Paulo.
Um conjunto de cineastas nordestinos – comparáveis aos jovens turcos da Cahiers du Cinéma em sua capacidade renovadora e revolucionária dentro do atual panorama do cinema nacional – vem produzindo obras de grande impacto, maduras e de pleno domínio técnico e narrativo. Marcelo Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus), Karim Aïnouz (Madame Satã), Paulo Caldas (Baile Perfumado), Sérgio Machado (Cidade Baixa) e o enfant terrible Cláudio Assis (Amarelo Manga), além de terem dirigido seus poderosos longas de estréia com estilos absolutamente pessoais mas igualmente primorosos, trabalham como um grande grupo, participando dos projetos uns dos outros.
Mais recente estréia desse grupo, Cinema, Aspirinas e Urubus (dirigido por Marcelo Gomes e com roteiro de Karim Aïnouz, Paulo Caldas e do próprio Marcelo Gomes) é um exemplo primoroso do que poderia ser o cinema brasileiro, caso se preocupasse menos com grandes bilheterias ou prêmios internacionais (o que não impediu o filme de ter sido premiado no último Festival de Cannes) e concentrasse esforços em um cinema que acredita e confia na força de sua narrativa, de seus personagens e que não olha para o Brasil de maneira condescendente ou arrogante, mas de uma forma simples e direta, abraçando essa realidade e nos devolvendo-a como uma jóia estranhamente familiar e desconhecida ao mesmo tempo.
A história de Johann (alemão fugido da Segunda Guerra Mundial que vem ao Brasil em busca de paz e liberdade) e Ranulpho (nordestino do interior de Pernambuco que foge da seca e da pobreza em direção ao Rio de Janeiro a procura de seu destino) em suas viagens pelo Nordeste brasileiro, vendendo Aspirinas no início da década de 40, nos faz reavaliar, em retrospectiva, os filmes recentes que retratam aqueles cenários e personagens, tornando sua maioria caricatural e folclórico, quando comparado à sinceridade e força desta representação.
Neste filme de Marcelo Gomes, tudo é preciso e na medida exata. Da fotografia à montagem, das interpretações à direção de arte, tudo funciona de maneira integrada, sem jamais se sobrepor à grande aposta do diretor: seus personagens e suas histórias. Impressiona ainda a capacidade de Marcelo Gomes em retirar de cada ator, mesmo daqueles com as menores pontas, uma veracidade e entrega total ao personagem e à situação em que ele se encontra. Nesse sentido, o destaque principal é João Miguel, ator de teatro baiano que foi selecionado para interpretar Ranulpho entre mais de 300 candidatos e foi recompensado com o prêmio de melhor ator no Festival do Rio – onde o filme também levou o Prêmio Especial do Júri – e na Mostra Internacional de São Paulo – quando Cinema, Aspirinas e Urubus tornou-se a primeira obra brasileira na história do festival a receber o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Internacional, além do prêmio da Crítica.
Não se trata de uma narrativa fácil, com seus tempos longos e de poucos acontecimentos, mas ao mesmo tempo há um grande apelo, um humor inerente à forma do brasileiro de observar e lidar com o mundo ao seu redor, que mantém o espectador atento a cada seqüência do filme até o seu final, quando nos despedimos com pesar dos personagens, sedentos por continuar a acompanhar suas trajetórias e destinos, assim como as desses promissores e corajosos diretores nordestinos.