24.9.05

A Menina Santa

La Niña Santa, de Lucrecia Martel, Argentina, 2004 - HSBC Belas Artes

Lucrecia Martel tem apenas dois longas metragens no currículo e já é considerada uma das maiores diretoras da atualidade, tendo atraído o interesse de nomes como Walter Salles (responsável pela distribuição de seus filmes no Brasil) e Pedro Almodóvar (produtor deste seu mais recente filme).
Com O Pântano, seu primeiro longa metragem, Martel chamou a atenção da crítica mundial nos festivais pelos quais passou (o que lhe rendeu prêmios em Berlim, Sundance, Havana e Toulouse, entre outros) não por revolucionar a linguagem cinematográfica – papel esse atualmente exercido com maestria pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul – mas por um domínio quase surreal, e aparentemente instintivo, dessa linguagem.
Em A Menina Santa, o que parecia ser puro instinto dá lugar a uma técnica e produção mais apuradas, sem que isso represente a perda de sua qualidade mais impressionante: a capacidade de criar personagens e ambientes completamente verossímeis e orgânicos, que transbordam vida a cada quadro e em cada detalhe e que parecem ter estado lá desde sempre, apenas esperando o dia em que a câmera de Martel fosse registrá-los por alguns minutos.
O filme trata das constantes dualidades a que somos expostos (desejos e repressão, sexualidade e religiosidade, bem e mal) e da dificuldade muitas vezes de se diferenciar as duas coisas. O foco principal é em Amalia, a menina santa do título, uma adolescente que tenta entender o despertar de sua sexualidade em meio ao turbilhão de experiências que a cercam: o grupo de estudos católicos do qual faz parte, um ambiente familiar não-convencional (Amalia vive com a mãe e o tio em um hotel, local primordial das relações curtas e fugidias), a relação íntima e de descobertas com a melhor amiga, Josefina, e o fato de ter sido furtivamente assediada pelo Dr. Jano, um dos médicos hospedados para um congresso no hotel de sua mãe, gesto esse que assume como um chamado divino para sua vocação – salvar a alma desse homem.
O universo de Menina Santa é impregnado de desejo e sexualidade – o que rende uma brincadeira maravilhosa, quando uma das empregadas do hotel passa o filme todo buscando “esterilizar” esse ambiente –, que invadem as personagens através de seus sentidos: visão (Amalia observando o Dr. Jano na piscina através de uma fresta ou enquanto dorme em seu quarto), audição (os zumbidos que Helena, mãe de Amalia, ouve ou a música etérea do teremim), olfato (Amalia sentindo em sua blusa o perfume da loção do Dr. Jano) e tato (Amalia roçando sua mão pelas paredes do hotel e na cabeça das crianças que correm pelos corredores, o toque do Dr. Jano que dá início à trama principal).
As personagens de Martel estão sempre com os desejos à flor da pele, tentando equacioná-los a partir das convenções sociais que tentam diferenciar o certo do errado, o bem do mal. Elas buscam a melhor forma de viver com esses dilemas, sem chegar a uma solução única ou moralista, e suas experiências podem nos auxiliar a lidar melhor com essas questões em nossas próprias vidas. Não há elogio maior a uma obra de arte.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

É incrível como lendo sua crítica é possível perceber detalhes que eu não percebi assistindo ao filme. Muito bom, assim o filme fica muito melhor...

26/9/05 09:08  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Que bom que você gostou! Obrigado pelo elogio.

Na verdade o filme tem uma infinidade de outras sutilezas que não caberiam colocar na crítica, mas que dariam uma boa conversa de bar, como a questão sexualidade x religiosidade ou o fato do filme ser todo em "sussuros", sem escândalos, o que é não apenas uma opção estética, mas de visão de mundo.

Enfim, as possibilidades são infinitas, como convém a um bom filme.

26/9/05 10:02  

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