31.8.06

A Dama na Água

Lady in the Water, de M. Night Shyamalan, EUA, 2006 - Cabine

Segundo o Michaelis, fábula é uma “narrativa em que se aproveita a ficção alegórica para sugerir uma verdade ou reflexão de ordem moral, com intervenção de pessoas e animais” ou ainda “narrativa ou conjunto de narrativas de ideação mitológica; mito”. A definição se encaixa à perfeição em A Dama na Água, mais recente filme de M. Night Shyamalan. Trata-se, até o momento, da obra mais pessoal e arriscada do diretor, e é nisso que reside sua beleza e também sua limitação. Filme imperfeito, por vezes narcisístico, por outras simplesmente ingênuo, ainda assim A Dama na Água se presta – como todo filme do diretor – a uma série de leituras e alegorias extremamente atuais e pertinentes.
A Dama na Água é, na realidade, uma compilação das principais questões que perpassam a filmografia do diretor: a necessidade do ser humano de compreender a verdadeira natureza de sua existência (O Sexto Sentido), de descobrir seus poderes ocultos (Corpo Fechado), reencontrar a fé (Sinais) e compreender que é impossível isolar-se do medo ao perder aqueles que amamos (A Vila). Embora se pareça num primeiro momento com uma inocente história de ninar (e de fato assim o é, pois segundo o próprio diretor o roteiro foi escrito a partir de uma história criada por ele para suas filhas) estamos, na realidade, em um cenário sombrio, quase apocalíptico: o homem deixou de escutar as forças da natureza, os personagens do filme encontram-se isolados do mundo exterior no condomínio retratado (quase como um bunker responsável por abrigar aquele microcosmo), a guerra está presente continuamente através da TV e do rádio e uma tempestade iminente se faz sentir ao longo de todo o filme.
Nesse cenário, Story – a mitológica narf criada por Shyamalan – surge como um ser redentor, alguém disposto a sacrificar de maneira altruísta sua vida pelos habitantes daquele lugar e que, com sua presença, consegue despertar o que há melhor em cada um e planta uma semente que irá salvar a espécie humana. É fato sabido que os filmes de Shyamalan costumam ser peças morais, com um forte senso de religiosidade, e A Dama na Água reforça esse pressuposto: uma parábola sobre a fé, sobre a necessidade humana de acreditar em algo superior em tempos violentos como os que vivemos atualmente.
Mas A Dama na Água é também uma parábola sobre o contar histórias. Há diversas cenas ao longo do filme que valorizam a importância não apenas do ato de se contar histórias, mas também daquele que atuaria como intérprete entre a história e seus ouvintes. É assim com a jovem garota asiática, que serve como ponte entre sua mãe e o protagonista do filme no relato da lenda das narfs, com a criança que lê mensagens ocultas em caixas de cereais como seu pai o faz nas palavras cruzadas, com a irmã do personagem de Shyamalan, que interpreta os sinais de Story (impossibilitada de revelar os segredos de seu povo) e com o próprio personagem interpretado pelo diretor, um canal para que a mensagem inspirada pela narf possa vir à luz e influenciar a história da humanidade.
A própria estrutura de A Dama na Água remete a esse tema da narração, com o filme mostrando suas estruturas, se construindo conforme o vamos assistindo, como se o diretor inventasse a história conforme a vai contando (o que remete novamente à sua origem como história de ninar para suas filhas). Vem daí algumas das fraquezas do filme, com suas pontas soltas, sua mitologia pouco convincente e suas soluções por vezes simplistas. Assim como os moradores do condomínio parecem acreditar naquela antiga lenda sem grandes questionamentos, Shyamalan exige essa mesma entrega do público. Por isso, trata-se de um filme no qual o espectador precisa embarcar desde o início, sob risco de não apreciar a viagem.
Apesar dessas limitações, Shyamalan consegue construir um belo filme, utilizando com primor um elenco talentoso, a belíssima fotografia de Christopher Doyle (colaborador habitual de Wong Kar Wai) e a trilha sonora precisa de James Newton Howard. Se está longe de ser uma de suas melhores obras, A Dama na Água ainda assim confirma Shyamalan como um dos mais talentosos e corajosos jovens diretores do EUA, que de dentro das engrenagens de Hollywood continua tentando forjar uma identidade própria e extremamente pessoal.

7 Comments:

Blogger CHICO FIREMAN said...

Léo, concordo plenamente com vc sobre as falhas e a ingenuidade do filme e acho que isso só soma pontos para o Shyamalan. No entanto, é um filme que demanda muita disponibilidade do espectador. Entendo perfeitamente porque muita gente não assimila o filme.

1/9/06 16:03  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Exatamente, Chico! Por isso digo que é preciso embarcar na história desde o início. Como o personagem de Giamatti, precisamos retornar ao olhar ingênuo de uma criança para melhor apreciar a obra.

1/9/06 16:24  
Anonymous Anônimo said...

e o filme desde o seu início alerta que os homens desaprenderam a ouvir, a acreditar. já não é um alerta o suficiente para que você embarque na do filme? e como disse lá no Chico, a primeira análise que eu fiz no meu blog [ http://enloucrescendo.com ] foi geopolítica e eu já estava gostando do filme só por isso, e analisar a coisa só como fábula me trouxe um novo filme, que bom, que lindo. abraços, ótimo blog

8/9/06 11:07  
Blogger Leonardo Mecchi said...

Ian,

Fiquei curioso pela sua análise geopolítica do filme (leitura essa que a obra do Shyamalan permite tranquilamente). Vou dar uma olhada no seu blog...

Obrigado pela visita e espero que a repita frequentemente. Abraços!

8/9/06 11:13  
Blogger Asinim said...

Este comentário foi removido pelo autor.

4/7/11 00:54  
Blogger Asinim said...

Não vejo os filmes de Shymalam com senso religioso e sim espiritualista, uma coisa é bem diferente da outra, pois ao contrário de moralizar ele nos leva a questionamentos para além do material e do físico, utilizando-se do fantástico e do sobrenatural para que o expectador se volte para dentro de si.

4/7/11 00:55  
Blogger joaozittoo said...

Amei o filme, fiquei meio confuso mas apos ler isso deu pra compreender ele.
Obrigado.

10/10/11 00:54  

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