Estamira
Estamira, de Marcos Prado, Brasil,2004 - Cabine
Documentários sobre personagens excêntricos ou curiosos tendem a cair no erro de apostarem unicamente na forte personalidade do documentado, delegando a seus depoimentos a responsabilidade pelo filme e deixando de lado qualquer preocupação cinematográfica que não seja colocar a câmera diante do personagem e deixá-la rodando.
Estamira (o filme) tinha tudo para ser mais um exemplar dessa tendência, em função da personalidade extremamente fascinante de Estamira (a personagem), foco desse longa de estréia do diretor Marcos Prado. Estamira é uma senhora de 60 e poucos anos, que há 20 busca seu sustento no aterro sanitário de Gramacho, receptáculo diário de mais de 8 mil toneladas de lixo produzido no Rio de Janeiro. Para além de sua história de vida, o que a torna tão fascinante é o fato de ser acometida por distúrbios mentais, uma espécie de esquizofrenia psicótica que a leva a ter uma visão singular, profética, poética, apocalíptica e filosófica do mundo.
De dentro de sua loucura e das condições degradantes de vida a que é submetida, Estamira possui uma lucidez, uma lógica interna à sua concepção de mundo, que não apenas surpreende como inquieta e provoca o espectador, com divagações que abarcam uma gama enorme de questões – como a pobreza e os impactos ambientais causados pelo consumismo predatório – sem com isso cair no didatismo ou em clichês tão comuns quando se trata desse tipo de assunto.
Mas o que realmente diferencia este projeto de Marcos Prado de outros inúmeros documentários “sociais” é sua capacidade de traduzir – através da linguagem cinematográfica (no caso, primordialmente a fotografia e montagem) – o universo no qual habita sua personagem. Não o mundo “real” (lixão, barraco, pobreza, loucura), mas aquele concebido por Estamira, uma realidade quimérica na qual ela vive apartada do mundo, um subterfúgio construído para tornar suportável o peso de uma realidade dura demais para ser vivida.
Embora aproxime-se algumas vezes de uma estética à la Sebastião Salgado – de glamourização e estetização da pobreza em nome de uma certa “denúncia social” – as imagens construídas pelo diretor (não por acaso fotógrafo de formação) conseguem tornar concreta, palpável e assustadoramente coerente a realidade segundo Estamira. Saímos do cinema não apenas impressionados com a personagem e repletos de questões sobre nossa própria concepção de mundo, como também com um vislumbre – graças ao trabalho visual de Prado – de como seria enxergar a realidade através dessa loucura lúcida, ou louca lucidez.
Como diz Estamira, “tudo que é imaginário tem, existe, é”, e de fato assim o é através da câmera de Marcos Prado.