Crime Delicado
Crime Delicado, de Beto Brant, Brasil, 2005 - Frei Caneca Arteplex
De uma coisa Beto Brant não pode ser acusado: acomodar-se a uma fórmula que lhe consagrou. Com seu mais recente filme – Crime Delicado, que tem dividido a crítica nos festivais e mostras por onde passou –, o diretor rompe com seus trabalhos anteriores (Ação Entre Amigos, Os Matadores e O Invasor, que se utilizavam de cores fortes, câmera inquieta, uma montagem ágil e trilhas sonoras marcantes para retratar a violência) de modo a realizar aqui um filme contido, de contemplação, um estudo sobre a arte – passando pelo teatro, literatura e artes plásticas – e a apreensão da vida através dela. É como se Tarantino resolvesse dirigir Razão e Sensibilidade.
Mas Crime Delicado não é apenas um estudo sobre a arte, sobre quem a faz, vive em função dela, escreve sobre ela ou, em seus momentos mais hilários, sobre os tipos que gravitam em torno dela e derramam suas angústias e expectativas numa mesa suja de bar. O filme é, acima de tudo, uma apologia à paixão e à imperfeição, não apenas na arte, mas em todos os campos da vida.
Para isso, Beto Brant recorreu à arte do instante, do imediato, onde o risco é iminente e o erro, inevitável: o teatro. O filme parte da história de uma paixão entre um crítico teatral apolíneo (interpretado por Marco Ricca, que adquiriu os direitos do livro homônimo de Sérgio Sant’Anna e propôs sua adaptação a Beto Brant) e uma jovem modelo dionisíaca (Lílian Taublib, estreando com coragem no cinema) para expandir o teatral a todo o filme: da mis en scène às atuações, passando pelos ótimos diálogos (em grande parte improvisados pelos próprios atores). A coerência dessa escolha só é rompida quando o filme equivocadamente nega essa construção ao optar, em alguns momentos, pelo jogo de campo e contracampo, estrutura tipicamente cinematográfica e contraditória à experiência teatral que se tentava passar, onde a visão do espectador pode flanar livremente por todo o espaço cênico.
Não é que Beto Brant esteja aqui em um terreno que lhe é completamente estranho – o tesão, a tensão e a paixão de seus filmes anteriores continuam presentes, embora de forma latente, e quem se lembra da cena de Os Matadores em que Chico Diaz aguarda ansiosamente o ônibus de sua vítima chegar sabe da magnitude que o diretor consegue atingir com a câmera parada (recurso utilizado na integralidade de Crime Delicado) –, mas com este filme ele consegue alcançar uma delicadeza, ainda que viril, que não podia ser prevista baseando-se em sua filmografia disponível até então.
Confortável no papel passivo de observador e avaliador (não apenas da arte, mas principalmente da sociedade ao seu redor), Antônio Martins (o personagem de Ricca) se vê obrigado, diante de sua abrupta paixão por Inês, a não apenas aceitar a imperfeição, mas a se entregar irrestritamente a ela. Os cenários – sempre internos, noturnos, em ambientes fechados – e a iluminação reforçam a visão de mundo do protagonista, que apreende a realidade como o faz com uma peça de teatro, apontando as falhas em tudo a seu redor, na eterna busca da perfeição. Sem vivência para guiá-lo através desses sentimentos conflituosos (solitário, sua experiência se resume às montagens que analisa, como Confraria Libertina, Woyzeck, O Brasileiro e Leonor de Mendonça, peças que remetem ao desejo e ao ciúmes e que possuem trechos intercalados ao filme), Martins começa a se afundar em suas neuroses, em uma vertigem que o levará ao crime que dá nome ao filme.
Se o novo filme de Beto Brant é imperfeito – e ele o é –, só resta ao espectador mergulhar nessa imperfeição, deixando preconceitos e expectativas para trás, para sair grato e enriquecido dessa experiência. Com Crime Delicado, Brant será tachado por muitos como arrogante ou pretensioso, mas é o preço a ser pago por aqueles que, como o diretor, se arriscam e não aceitam entregar mais do mesmo a um público ávido por ser enganado e arredio ao desafio.