28.4.06

O Corte

Le Couperet, de Constantin Costa-Gavras, França, 2005 - Cabine

Em um determinado momento de O Corte, a família do protagonista Bruno Davert entra, de maneira exageradamente explícita e didática, na clássica discussão sobre os fins justificarem os meios. Tal questão é primordial no cinema de Costa-Gavras, que de Amém a Z nos expõe as reações de seus personagens diante das imposições do meio em que vivem. Mas ela serve também para questionarmos a própria estrutura deste mais recente filme do diretor: o fato de se tratar de um filme “engajado”, com temática social e de denúncia contra os excessos e mazelas de um capitalismo selvagem, justifica sua forma tão desleixada e desinteressante?
Mal resolvido entre o thriller social e a comédia de absurdo, O Corte acompanha Bruno Davert, alto executivo da indústria de papéis que, após ser demitido em função de reestruturações de sua empresa, resolve eliminar (literalmente) seus possíveis concorrentes na busca por um novo emprego. A partir desse momento, a câmera cola no protagonista e o acompanha ao longo do filme na busca por seus rivais onde, entre uma situação inusitada e outra, os personagens expõem ininterruptamente uma série de lugares comuns sobre o desemprego e suas conseqüências.
A opção por retratar o protagonista próximo ao patético não permite que o espectador se identifique com ele, perdendo com isso grande parte do impacto da exposição. Não estamos diante de “alguém como nós”, vivendo uma situação pela qual poderíamos passar e tomando decisões que poderiam ser as nossas. Temos ao invés disso um personagem excêntrico e atrapalhado, ao qual acompanhamos, na melhor das hipóteses, com alguma curiosidade.
O que salva o filme são as interpretações de José Garcia, como um Bruno Davert ambíguo e cínico, e de Karin Viard, como a esposa que, mesmo sem compreender exatamente o que está ocorrendo, tenta manter o casamento e ajudar seu marido. Apesar disso, a insistência no discurso panfletário e a pouca atenção dada à encenação fazem de O Corte um filme do qual pouco se retêm após a saída do cinema.

26.4.06

Brasília 18%

Brasília 18%, de Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 2006 - Cabine

Considerado um dos maiores diretores brasileiros, Nelson Pereira dos Santos é responsável por clássicos do cinema nacional como Rio, 40 Graus, Vidas Secas e Memórias do Cárcere. Desde 1994, porém, vinha se dedicando a documentários, tendo alcançado bons resultados no gênero em filmes como Raízes do Brasil, díptico sobre a vida e a obra de Sérgio Buarque de Holanda.
Foi através do documentário, inclusive, que surgiu a possibilidade de seu retorno à ficção. Contratado por uma TV francesa para documentar os cem primeiros dias do governo Lula, Nelson partiu em direção a Brasília com sua equipe. Como o projeto não foi pra frente, o diretor resolveu tirar da gaveta um roteiro que se passava na capital nacional e assim surgiu Brasília 18%, sua primeira ficção em doze anos.
Entretanto, esse longo período ausente da ficção parece ter prejudicado sua habilidade em “retratar na tela a vida, as histórias, as lutas, as aspirações de nossa gente”, anseio proclamado por ele mesmo em 1951. Brasília 18% carece desse corpo-a-corpo com a realidade, por mais contraditório que isso possa parecer em se tratando de um filme cuja temática não poderia ser mais atual: Olavo Bilac, um legista que hoje mora nos EUA, é chamado de volta ao Brasil para realizar a autópsia de uma jovem assassinada e acaba mergulhando em um escândalo que envolve políticos do alto escalão, subornos, crimes e CPIs.
Através de uma trama de investigação e mistério, o filme se limita à simples denúncia da corrupção em Brasília – fato notório e cotidiano – sem se aprofundar numa análise ou discussão a partir disso. Em um recurso semelhante ao utilizado por Sérgio Bianchi em seus filmes, aponta-se a falência geral da sociedade, sem buscar um confronto real e direto ou soluções para o mal exposto. Isenta-se assim de discutir responsabilidades (se todo mundo é culpado, ninguém é culpado) a ponto de desenhar um final onde tudo volta ao equilíbrio anterior, relegando o país a um eterno mar de lama, como se nada daquilo dissesse respeito ao protagonista (e conseqüentemente ao espectador) e este pudesse voltar à tranqüilidade de sua vida longe do Brasil.
No plano formal, o filme também deixa a desejar, com uma mis-en-scène e fotografia que não parecem ter sido suficientemente pensados e trabalhados. Os diálogos e as atuações são muitas vezes empostados e a decisão de batizar os personagens com o nome de vultos da literatura brasileira reduz-se a uma simples brincadeira intelectual, sem nenhum significado mais profundo.
Nelson perdeu a chance, com Brasília 18%, de realizar um necessário e urgente retrato da situação política de nosso país, saindo-se com um filme de pontas soltas e mal resolvidas, distante, portanto, da qualidade do diretor contestador, polêmico e genial que já provou ser. Com isso, perde o cinema nacional e, o mais grave, perde o Brasil.

20.4.06

Três Enterros

The Three Burials of Melquiades Estrada, de Tommy Lee Jones, EUA, 2005 - Cabine

O Oeste sempre foi um local mitológico para o cinema americano. Desde seus primórdios – tendo como maior exemplo O Grande Assalto ao Trem (curta-metragem de 1903 considerado um marco na história do cinema por ser a primeira narrativa organizada da forma como hoje concebemos o cinema) – até seu apogeu com os clássicos de Ford e Hawks nas décadas de 50 e 60, o faroeste sempre foi a pedra angular sobre a qual se consolidou a cinematografia americana. Nas décadas de 70 e 80, entretanto, o gênero foi relegado ao esquecimento, até sua exumação através das mãos de um de seus atores-símbolo, Clint Eastwood, que em 1992 atuou e dirigiu um dos grandes clássicos do western: Os Imperdoáveis.
Pois é das mãos de outro ator que surge o mais recente filme a explorar em belíssimo cinemascope os cenários do oeste americano para contar a história de homens embrutecidos pelo meio que, apesar disso, mantêm-se fiéis às suas crenças e princípios morais. Não se trata de um exemplar canônico do gênero, como não poderia deixar de ser em pleno século XXI, mas Três Enterros, estréia na direção de Tommy Lee Jones premiada com Melhor Roteiro e Ator no último Festival de Cannes, é um filme digno da mitologia desse espaço chamado Oeste Americano.
Bebendo da fonte de Sam Peckinpah – diretor de clássicos do gênero como Meu Ódio Será Sua Herança e Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (filme que possui claras semelhanças com Três Enterros) –, Tommy Lee Jones retrata a luta de Pete Perkins, interpretado por ele mesmo, para manter seus valores (no caso, a importância da amizade e de uma promessa feita há muito tempo) em uma comunidade corrupta, recorrendo à violência quando necessário, porém sem a intensidade tão característica da obra de Peckinpah.
A primeira metade do filme sofre sob a influência de seu roteirista – Guillermo Arriaga (Amores Brutos, 21 Gramas) – que, buscando tornar crível no menor tempo possível a forte amizade entre Perkins e Melquiades Estrada (o morto que sofrerá os três enterros do título), abusa dos saltos temporais que tradicionalmente marcam seus roteiros. Entretanto, quando se inicia a jornada em direção ao descanso final de Melquiades – jornada essa tanto física quanto espiritual –, Jones assume com admirável habilidade a direção da obra, com uma economia e confiança raras em um diretor estreante e com uma atuação na pele do protagonista digna do prêmio que recebeu em Cannes. Tendo atuado com e sob a direção de Clint Eastwood em Cowboys do Espaço, Jones parece ter aprendido bem as lições do velho mestre.
Apesar de alguns excessos ilustrativos, principalmente na caracterização de Mike Norton (o policial da imigração responsável pela morte de Melquiades), uma cena em especial – a ligação telefônica em um bar mexicano – ilustra bem o domínio técnico na direção de Jones. Da fotografia ao uso do som, das atuações à alternância entre os ambientes, tudo funciona à perfeição e com precisão para a criação do clima necessário. Intercalando momentos intimistas com outros de uma ironia próxima ao humor negro, Jones acompanha a trajetória de Perkins e Norton em busca da redenção e de um sentido para suas vidas. Ao final, com uma única e precisa pergunta como último diálogo do filme, Jones expõe todo o peso da vida de seu personagem, colocando em questão a própria possibilidade de redenção.
Em um mundo onde as mortes são anônimas e contadas aos milhares, Tommy Lee Jones se revela um humanista ao dedicar todo um filme à dignidade da morte de apenas um homem. Aos 59 anos, Jones se mostra um diretor promissor.

12.4.06

O Novo Mundo

The New World, de Terrence Malick, EUA, 2005 - Cabine

Terrence Malick é um dos menos prolíficos e mais talentosos diretores da atualidade. Cineasta bissexto, dirigiu apenas 4 longas metragens em mais de 30 anos de carreira, mas mesmo com tão restrita obra foi responsável por uma reavaliação do que se conhecia como cinema no início dos anos 70, tanto em termos de imagem e som quanto de personagens e narrativa. Enquanto vários cineastas daquela época se referenciavam à modernidade de um Godard, Malick buscava 40 anos antes, na obra de Murnau, a inspiração para seu trabalho.
Formado por Harvard em filosofia, Malick possui um olhar direfenciado perante o mundo, um olhar que não está interessado em entender ou explicar como o mundo é, mas que se maravilha simplesmente com o fato dele ser. Em O Novo Mundo, seu mais recente filme, estão presentes os principais temas de sua curta filmografia: a relação do homem com a natureza, o lamento pela perda da inocência, a busca por uma nova chance e pela volta a um paraíso perdido, a definição da individualidade e a relação entre o ser e o outro.
O cinema de Malick é um cinema preponderantemente imagético, e nesse sentido O Novo Mundo leva esse trabalho um passo além do realizado em seus filmes anteriores. A narrativa aqui é fragmentada, quase inexistente, os eventos são espasmódicos, como se sua razão de ser fosse apenas permitir a existência das imagens, pois é através delas que Malick conta sua história. “É pela imagem que se retém a sensação do infinito expresso através de limites: o espiritual no material, a imensidão nas dimensões de um quadro”. Essa definição do cineasta e teórico russo Andrei Tarkovsky aplica-se à perfeição ao cinema de Terrence Malick e, em especial, a este O Novo Mundo.
Ao retratar os primeiros contatos entre os exploradores britânicos e os nativos americanos, Malick não busca recriar à perfeição esse encontro fundador da sociedade norte-americana, mas ao invés disso procura experimentá-lo como se fosse a primeira vez. Não se trata da recriação de um fato histórico, mas de contemplá-lo através dos olhos daqueles que o protagonizaram. A câmera de Malick flana pela paisagem, tomando o tempo necessário para que o olhar capte todas as nuances daquele novo ambiente, sublimando o tempo em busca de um continuum que valorize a experiência sensorial acima da compreensão.
A América se apresenta como uma possibilidade de convívio harmonioso com a natureza, um Éden redescoberto – utopia cara a todos os personagens de Malick desde seu primeiro filme –, e nesse encontro com a natureza está também o encontro de cada personagem com sua essência, longe da modernidade e da sociedade. Assim foi com Kit e Holly em sua casa na árvore em Terra de Ninguém, com Bill e Abby na fazenda de Dias de Paraíso ou com o soldado Witt em seu refúgio na ilha de Além da Linha Vermelha. Em O Novo Mundo, quando Smith sobe o rio em busca do chefe da tribo indígena – em uma viagem iniciática em muito semelhante à do personagem de Martin Sheen em Apocalypse Now –, o resultado final é o reencontro com sua própria natureza humana, sua individualidade perdida nas hierarquias militares, contra as quais, ao que indica sua condenação por motim, sempre lutou.
A voz off, parte fundamental do cinema de Malick, continua presente nesta obra. Se em seus dois primeiros filmes essa voz se restringia muitas vezes à função de mera narradora, ainda que capaz de epifanias reveladoras, em Além da Linha Vermelha inicia-se um movimento que atinge sua plenitude em O Novo Mundo: aqui, o off é o espaço do subjetivo, da tentativa de compreensão de si mesmo e do outro, num fluxo de consciência (“Talvez os homens tenham uma única grande alma, da qual todos fazem parte”, nos diz um dos personagens de Além da Linha Vermelha) que permite diferentes pontos de vista. Outra peculiaridade do mais recente filme de Malick é que, enquanto em Terra de Ninguém e Dias de Paraíso a narração em off vem de um único personagem e em Além da Linha Vermelha há uma polifonia de vozes interiores, em O Novo Mundo somos apresentados a uma díade – a subjetividade de Smith e de Pocahontas – que ora se complementam, ora tentam se compreender. Passados quase 2/3 do filme, surge uma terceira voz off, a do colono John Rolfe, que nos causa reações semelhantes às causadas por seu personagem em Pocahontas: estranhamos no início sua aparição, relutamos em nos deixar envolver por essa nova subjetividade e aos poucos nos acostumamos e nos afeiçoamos a ela a ponto de não mais desejarmos o retorno de Smith.
Mas o olhar de Malick não se restringe à América primitiva nem tampouco à visão dos descobridores. Há dois novos mundos a serem descobertos, a América para os ingleses e a Inglaterra para os índios, e Malick os mostra com igual interesse e surpresa. Quando os exploradores retornam à Inglaterra, levando consigo Pocahontas e mais alguns de sua tribo, o diretor reserva a mesma generosidade do olhar ao Velho Mundo, atendo-se a cada detalhe como se, assim como os índios, contemplasse aquele ambiente pela primeira vez. E mesmo em plena civilização a questão da natureza volta à tona, em especial quando um dos índios caminha pelos jardins do palácio real, com sua beleza geométrica apontando uma diferença fundamental: onde na América havia uma relação de sinergia do homem com o meio, na Europa essa relação é de dominação da natureza pelo homem.
Assim como em toda obra poética, Malick nos convida com O Novo Mundo a ampliar nosso olhar, buscando ultrapassar nossa condição humana em busca do sublime presente em cada detalhe. Em um mundo sobrecarregado de imagens, Malick nos devolve a virgindade do olhar.

6.4.06

Bonecas Russas

Les Poupées Russes, de Cédric Klapisch, França, 2005 - Cabine

Em 2002, Cédric Klapisch lançava Albergue Espanhol, um pequeno filme que atingiu mais de 3 milhões de espectadores na França. Sem grandes pretensões, a obra de Klapisch retratava com simpatia e fidelidade as experiências e questionamentos de estudantes que se aventuravam a conhecer outras culturas através de programas de intercâmbio, conseguindo com isso grande empatia junto ao público jovem europeu.
Com Bonecas Russas, o diretor francês retoma os mesmos personagens de Albergue Espanhol cinco anos depois, acompanhando o amadurecimento de seus dilemas e relações. Infelizmente, Klapisch demonstra não ter ele mesmo amadurecido na direção, criando uma seqüência nitidamente inferior ao filme que a originou.
Bonecas Russas aparenta ser, desde o início, uma produção desleixada, feita às pressas para aproveitar o sucesso da obra anterior. O filme carece de ritmo – apesar da montagem ágil que busca dar conta, através de flashbacks e histórias paralelas, da complexidade das relações e dos pensamentos do protagonista Xavier (Romain Duris) – e seu humor é de gosto, no mínimo, bastante duvidoso. Rodado em HD (vídeo digital de qualidade inferior à tradicional película 35mm), o filme possui ainda uma fotografia que beira a negligência completa.
Klapisch se estende por mais de 90 minutos antes de definir seu foco entre as tentativas de Xavier de viabilizar sua escolha profissional e seus relacionamentos conturbados com mulheres dos mais diversos tipos. Colabora para esse arrastar do filme a interpretação de Duris, freqüentemente eclipsado pelas atrizes com quem contracena, em especial Cécil de France (Isabelle, a amiga lésbica de Xavier) e Kelly Reilly (Wendy, a garota britânica de Albergue Espanhol).
Quando opta por se concentrar nos percalços do relacionamento de Wendy e Xavier, o filme ganha em força e coerência, mas já é tarde demais para resgatar o interesse do espectador. Perde-se assim uma bela oportunidade de um retrato bem humorado e sensível desses jovens adultos contemporâneos, que aos 30 anos ainda buscam um sentido para suas vidas e relacionamentos.