Lavoura Arcaica
Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, Brasil, 2001 - CineSesc
O livro homônimo de Raduan Nassar, do qual o filme Lavoura Arcaica foi adaptado, é divido em duas partes: A Partida e O Retorno. Essa dialética dos atos, pensamentos e sentimentos do homem diante do mundo perpassa todo o filme de Luiz Fernando Carvalho: família e indivíduo, natureza e religião, sagrado e profano, afeto e opressão, ordem e transgressão, lirismo e loucura, verborragia e silêncio, imagem e palavra, luz e sombra. As interpretações são infinitas, mas o tema é um só: o ser humano, em toda sua plenitude – complexo e contraditório. E nisso filia-se a toda uma linhagem dramática que vai de Édipo Rei a Hamlet, utilizando em sua narrativa um tom trágico, poético e bíblico.
Em torno da mesa – lugar-símbolo da união e comunhão da família, mas também sinal do poder e do profundo abismo que os separa irremediavelmente – conhecemos os personagens desta tragédia, uma família de imigrantes libaneses baseada em uma rígida estrutura camponesa, patriarcal e religiosa. Raul Cortez – impecável, embora durante as filmagens tenha pensado em desistir do personagem, tamanha sua carga dramática – é o pater familias, sentado à cabeceira, imponente, opressor, responsável por longas homilias e pregações antes das refeições. A partir dele, a família se dispõe às laterais da mesa.
“O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava, fosse uma protuberância mórbida pela carga de afeto”. Sentado à direita do pai todo-poderoso está Pedro (“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”), o primogênito que é encarregado de resgatar André, o filho pródigo e protagonista de Lavoura Arcaica, que com sua partida e posterior regresso inicia a desintegração desse núcleo familiar como um câncer, contagiando todo o galho esquerdo até a inevitável implosão dessa estrutura.
André, densamente interpretado por Selton Mello, personifica o dilema primeiro dessa família: “se o pai no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição”. Vive dividido entre o desejo de ser amado, ter seu lugar à mesa da família e a ânsia por uma individualidade que lhe é negada (a família enquanto instituição plena e una só é possível através da anulação da individualidade de suas partes) e que lhe permitiria a satisfação de seus desejos impetuosos. “Quero ser o profeta de minha própria história”, proclama André. Incapaz de conter essa pulsão de destruição, André opta por exilar-se, como um leproso desejoso de poupar a todos da contaminação.
O filme inicia-se nesse reencontro entre os dois irmãos, quando Pedro e o espectador irão descobrir, a duras penas e de modo tortuoso, os motivos que levaram André a essa reclusão. A história é contada através de flashbacks motivados pelas explanações de André, que mais lançam sombras do que luzes sobre os fatos, utilizando-se de meias-palavras, como se a origem de seus dilemas e sofrimento fosse complexa e ramificada demais para ser tratada de uma forma direta. A fotografia de Walter Carvalho ilustra esse espírito perturbado e perturbador de maneira brilhante, através de um jogo magistral entre luz e sombra, trabalhando com enquadramentos ora exuberantes, ora morbidamente deformados.
Luiz Fernando Carvalho toma o tempo necessário, tempo esse que é um dos temas principais do livro, para desfiar de forma belíssima essa história diante de nossos olhos. O filme dura quase três horas e exige do espectador o mesmo grau de imersão e entrega que foi exigido dos atores, que durante dois meses se refugiaram em uma fazenda, vivendo a rotina dos camponeses e agindo segundo seus papéis na família, além de terem oficinas sobre os diversos temas do filme (Leonardo Boff, por exemplo, trabalhou com os atores a questão da religiosidade).
O resultado é uma experiência artística radical, onde o diretor nos leva a sentir, mais do que entender, através de um admirável embate entre imagem e palavra, a complexidade dessa rede de relacionamentos familiares, a profundeza da psique humana e as reações do espírito humano a um ambiente repressor e arcaico.
Na época de seu lançamento, o filme foi ora tratado como o marco-zero de um novo cinema brasileiro ora detratado como um filme pedante. Em ambos os casos, tentava-se enquadrá-lo numa visão particular do que deveria ser o cinema brasileiro. O fato é que, passados quatro anos de sua estréia, Lavoura Arcaica continua sendo um exemplar ímpar dentro da cinematografia brasileira, uma obra completa, plenamente justificável em si.