24.3.07

Antônia - Crônicas de uma Bilheteria

Após três anos de quedas consecutivas do público dos filmes brasileiros, as expectativas para 2007 eram enormes. Paulo Sérgio Almeida, editor da Filme B, apontava o ano que começava como "o ano que nunca existiu, com grande força dos filmes médios", em entrevista dada em janeiro para o jornal "Folha de São Paulo". Nesse mesmo artigo, Carlos Eduardo Rodrigues, diretor-executivo da Globo Filmes, previa um crescimento de público "entre 10% e 15%".
O próprio governo federal apostava numa recuperação da bilheteria do cinema brasileiro, com Orlando Senna, secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, indicando 2007 como um ano "propenso a ser bom" e a Ancine, em sua análise técnica justificativa para a Cota de Tela de 2007, prevendo que 29 lançamentos nacionais em 2007 atingiriam um público superior a 100 mil espectadores, o que elevaria, segundo a Agência, o total de espectadores para os filmes brasileiros em 2007 a estrondosos 19 milhões, previsão impressionante se levarmos em consideração que nos últimos dois anos esse número ficou próximo a 9 milhões.
Em todas as análises e previsões, alguns filmes se repetiam como apostas certas para justificar tamanho otimismo: A Grande Família, Antônia, Cidade dos Homens, Caixa Dois, O Magnata. Se A Grande Família, primeira das grandes apostas a ser lançada nos cinemas este ano, está em linha com as expectativas (aproximando-se dos 2 milhões de espectadores após um mês e meio em cartaz), Antônia, lançado duas semanas depois, patinou na bilheteria (com pouco mais de 75 mil espectadores em 30 dias) e já acionou o alerta amarelo para uma produção que, por depender quase que exclusivamente de incentivos fiscais públicos, se vê continuamente obrigada a justificar sua existência.
Lançado com 125 cópias, Antônia vinha no embalo da série homônima que atingiu ótima audiência na TV Globo (a estréia da série teve 32 pontos no Ibope, 11 a mais do que o mesmo horário na semana anterior), teve grande divulgação na mídia (em especial na própria Globo) e recebeu críticas positivas em jornais, revistas e nos festivais por onde passou (levando o prêmio de público na Mostra de São Paulo e tendo sido selecionado para o Festival de Berlim). Em função disso, sua estréia estava cercada de expectativa, com previsões de público em torno de 500 mil espectadores.
O primeiro alerta veio logo na terça-feira seguinte à estréia, no blog do crítico do jornal "O Estado de São Paulo" Luiz Zanin Oricchio, e foi ecoado no dia seguinte por notas no Ilustrada no Cinema, do editor-assistente do caderno Ilustrada da "Folha de São Paulo" Leonardo Cruz, e Olha Só, do crítico e jornalista Ricardo Calil. Nos três casos, o tom era um misto de surpresa e decepção diante dos números do primeiro final de semana (público de 23,9 mil espectadores e média de apenas 191 pessoas por cópia) e as primeiras explicações começavam a ser esboçadas: o filme tinha falhado nas bilheterias em função do alto preço dos ingressos – que afastaria o público de baixa renda, teoricamente aquele que mais se identificaria com o universo retratado em Antônia – e de um preconceito da classe média, que não estaria disposta a sair de casa para ver pobreza e periferia no cinema.
Após um mês em cartaz e seus pouco mais de 75 mil espectadores, foi a vez da "Folha de São Paulo" publicar, no último dia 12 de Março, uma matéria de capa no caderno Ilustrada intitulada "Antônia – Por Que o Filme Não Brilhou?", onde são ouvidas as opiniões da diretora, da distribuidora do filme e de críticos de cinema sobre seu fracasso nas bilheterias. Aqui as especulações foram várias, indo da escolha errônea para a data de lançamento (próxima ao Oscar e à estréia de filmes como Rocky) à acusação de que a série de TV acabou por prejudicar ao invés de beneficiar o filme, passando pela ponderação de Tata Amaral de que Antônia foi superestimado e seu lançamento, desproporcional ao perfil do filme. A questão do preço dos ingressos e de uma suposta aversão do público à "realidade dura do país que ele vê todo dia de graça, na TV e no jornal", segundo o distribuidor do filme Bruno Wainer, foram relembradas também. A matéria na Folha motivou uma nova onda de análises e comentários, em especial dos críticos do "Estado de São Paulo" Luiz Carlos Merten e Luiz Zanin Oricchio.
Diante de tamanha repercussão, é preciso antes de mais nada relativizar e contextualizar esse "fracasso" do filme de Tata Amaral. Levando-se em consideração os números do cinema brasileiro em 2006, os 75 mil espectadores de Antônia (lembrando que o filme continua em cartaz, o que pode elevar ainda um pouco tal cifra) já seriam suficientes para colocá-lo na 14a posição do ranking, acima de 80% dos lançamentos brasileiros do ano passado. Se compararmos tal resultado com o de filmes que possuem uma aproximação e olhar semelhantes diante desse ambiente da periferia paulistana, como De Passagem (11.400 espectadores) e Garotas do ABC (10.700), vemos que esse número é ainda mais expressivo.
Ou seja, a bilheteria de Antônia só é decepcionante em relação à expectativa que se criou em torno dela, e não quando comparada ao atual cenário de público para os filmes brasileiros, o que só reforça a hipótese de Tata Amaral de que seu lançamento foi desproporcional (com a estréia simultânea em mais de 50 cidades). Não se trata aqui de dizer que Antônia não teria potencial para um público maior, mas sim de que o segmento que ele almejava (o do filme médio, com público entre 100 e 500 mil espectadores) é hoje virtualmente inexistente no Brasil.
Se analisarmos os lançamentos brasileiros do ano passado, veremos que apenas cinco filmes, entre mais de 65 estréias, tiveram um público entre 100 e 500 mil espectadores. Em 2005, novamente apenas cinco lançamentos conseguiram atingir essa faixa de público. Em 2004? Cinco. As razões para isso já foram exaustivamente discutidas e analisadas por aqui, em especial na série "Cinema brasileiro para quem?", e de lá para cá pouco (ou quase nada) mudou. O que então teria motivado as previsões otimistas de diversos especialistas do setor no início do ano? A crença de que a origem da baixa bilheteria do cinema brasileiro estava nos filmes, e que com produções de maior apelo popular essa situação se reverteria. O que Antônia nos confirma é que estamos diante de problemas estruturais, e enquanto eles não forem solucionados, não há visibilidade que salve o cinema brasileiro.

8.3.07

Borat

Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan, de Larry Charles, EUA, 2006 - Cabine

Se há filmes que já nascem polêmicos, Borat certamente é um deles. Seu humor anárquico, escrachado, escatológico e politicamente incorreto tem sido motivo de deleite para alguns e escárnio para outros, em igual medida e intensidade. Em função disso, da mesma forma que ocorreu quando do lançamento de A Dama na Água nos cinemas brasileiros (também ele um filme que dividiu opiniões), a Cinética decidiu realizar um debate crítico com todos os membros de sua redação sobre Borat, do qual eu não podia deixar de participar. O resultado é um exercício interessantíssimo de aproximações e divergências (todas muito bem embasadas e argumentadas) sobre esse polêmico filme.
Leia a discussão em:

1.3.07

À Margem do Concreto

À Margem do Concreto, de Evaldo Mocarzel, Brasil, 2005 - É Tudo Verdade

À Margem do Concreto é a segunda parte da tetralogia de um dos mais premiados documentaristas brasileiros dos últimos anos, Evaldo Mocarzel, dedicada a uma São Paulo que existe à margem da São Paulo “oficial”.
Mocarzel é um diretor que aposta na função social do cinema, de conscientização de uma parcela da população e de espaço de expressão para uma outra que, não fosse por esse veículo, permaneceria relegada à invisibilidade. Foi assim em À Margem da Imagem, longa de estréia do diretor sobre moradores de rua em São Paulo, e também em Do Luto à Luta, documentário premiado em Gramado sobre portadores da Síndrome de Down.
Neste seu mais recente filme, ovacionado no Festival de Brasília, de onde saiu com o prêmio de público, Mocarzel foca sua câmera no movimento social dos sem-teto. Partindo da estatística de que a região central de São Paulo possui uma taxa de desocupação de imóveis próxima a 30%, enquanto muitos paulistanos não possuem um lugar para morar, o diretor busca documentar quem são as pessoas por trás das ocupações de edifícios que, de tempos em tempos, irrompem nos meios de comunicação.
“Como a mídia os rotula de ‘invasores’ e ‘baderneiros’, vários filmes podem ajudar a legitimar uma luta que é digna”, diz o diretor, justificando a alcunha de “anti-reportagem” que ele próprio designou ao filme. Pois é justamente esse o principal objetivo de À Margem do Concreto: desestigmatizar as pessoas envolvidas nos movimentos de luta por moradias.
Sente-se falta, para um panorama mais amplo da questão, de um histórico sobre a origem do déficit habitacional e de propostas para sua solução, bem como de depoimentos dos outros lados envolvidos, mas esse foco exclusivo nos integrantes dos movimentos reivindicatórios parece fazer parte consciente da estratégia do diretor. O que temos é simplesmente a exposição de um problema e as motivações e histórias de vida por trás das pessoas envolvidas, em um retrato de força rara em um gênero que costuma priorizar uma suposta imparcialidade acima de tudo.
Os depoimentos dos líderes dos movimentos dos sem-teto impressionam pelo nível de conscientização e organização desses grupos. Longe da imagem de um povo cordial e submisso, eles tomam a responsabilidade por seu destino nas mãos, a despeito das dificuldades impostas pelo poder público. “Às vezes, temos que virar foras da lei para fazer valer a lei”, afirma uma das entrevistadas. A presença maciça das mulheres na liderança do movimento, a propósito, é outro fator que chama a atenção não apenas neste documentário, mas também em Dia de Festa, filme de Toni Venturi sobre o mesmo tema.
O discurso dos líderes é por vezes anacrônico (citações a Lênin, Marx e Guevara são freqüentes), mas demonstram que a luta de classes, longe de ter sido extinta pela globalização, continua cada vez mais forte.
Há diversos momentos interessantes no documentário, como os que retratam a auto-gestão dos moradores de prédios ocupados (o que inclui aulas de reforço para as crianças utilizando-se a metodologia de Paulo Freire), a ênfase dada pelas lideranças no termo “ocupação” em contraposição ao “invasão” utilizado pela mídia, o momento em que o diretor reúne todas as lideranças entrevistadas para assistirem reportagens realizadas sobre as ocupações e discutirem a visão da mídia e da sociedade sobre eles, e por último, numa das imagens mais fortes do documentário, uma criança, sonolenta e assustada, chupando o dedo em meio ao choque com policiais em uma ocupação.
E é justamente com uma ocupação real, captada por três câmeras simultaneamente, que Mocazel encerra o filme, num clímax que o aproxima de um thriller. Acompanhamos desde os preparativos, a ocupação do edifício durante a madrugada, a chegada da polícia e o conflito com os manifestantes, incluindo tiros e bombas, em cenas normalmente vinculadas a guerrilhas urbanas em lugares como Iraque ou Afeganistão, mas que ocorriam a poucos metros do Teatro Municipal de São Paulo.
Aproximando-se perigosamente da espetacularização, o final catártico de À Margem do Concreto busca na verdade um chamado à conscientização, a uma tomada de atitude por parte do espectador diante das imagens e pessoas que lhe foram mostradas, numa tentativa do diretor de atuar sobre a realidade retratada. Infelizmente, o histórico de documentários sociais de nossa filmografia nos alerta para a ineficiência desse tipo de filme em alterar o status quo de nossa sociedade. Mas a insistência nessa tentativa, apesar das evidências em contrário, não é uma das funções mais nobres do documentário?