23.5.06

Máscara da Ilusão

MirrorMask, de Dave McKean, Reino Unido/EUA,2005 - DVD

Parceiro há décadas do escritor Neil Gaiman, o artista plástico britânico Dave McKean ilustrou vários de seus trabalhos, tornando-se conhecido principalmente pelas exuberantes capas que criou para Sandman, uma das mais bem sucedidas e premiadas graphic novels de todos os tempos. Máscara da Ilusão retoma essa fecunda parceria, na primeira incursão de McKean pelo longa-metragem, baseado em roteiro inédito de Gaiman.
Aqueles que acompanham o trabalho de Neil Gaiman – seja através de suas graphic novels (Sandman, Os Livros da Magia, Orquídea Negra) ou de seus romances (Belas Maldições, Deuses Americanos) – estão acostumados com sua imaginação extraordinária, capaz de criar mundos inteiros com um detalhismo e coerência impressionantes. Responsável pela tradução visual desse universo onírico, McKean é dono de um estilo inconfundível, numa mescla de desenho, fotografia, bonecos e manipulações digitais de imagem.
Assim como Coraline, obra infanto-juvenil de Neil Gaiman (não por acaso ilustrada por McKean), acompanhamos em Máscara da Ilusão o processo de amadurecimento de uma criança, tentando entender o mundo em que vive através da fantasia. Nesse sentido, o filme guarda semelhanças com o clássico A História Sem Fim, de Wolfgang Petersen, mas aqui o estilo de McKean se impõe, com um visual que impressiona desde o primeiro instante, indo do expressionismo à pintura de Hieronymus Bosch, passando pelo cinema de Michel Gondry.
Helena (interpretada pela estreante Stephanie Leonidas), trabalha no circo de seus pais. Apesar de seu cotidiano ser o sonho da maioria das crianças, ela gostaria de uma vida “normal” e estável e briga constantemente com sua mãe por isso. Após uma dessas discussões, sua mãe é internada com uma doença desconhecida. Arrependida e com peso na consciência, Helena adormece e se vê em um mundo de fantasias, um reino repleto de criaturas estranhas e pessoas mascaradas que está prestes a entrar em colapso, e cabe a ela restaurar esse equilíbrio perdido.
Se a alegoria do amadurecimento de Helena impressiona por seu retrato carinhoso e matizado (diferentemente da infância edulcorada da maioria dos filmes que focam nesse universo), infelizmente o visual hiperbólico de McKean, apesar de funcionar muito bem nos quadrinhos, aqui dá um ar excessivamente artificial ao filme, que impregna da interpretação à movimentação dos atores em cena, não permitindo que o espectador embarque inteiramente nessa fantasia. O enredo também dificulta esse envolvimento, uma vez que parece evoluir de maneira arbitrária, deixando ao acaso – e não às ações de Helena – a responsabilidade pelo seu desenvolvimento.
Máscara da Ilusão se apresenta, ao final, como uma bela fábula sobre a infância e a passagem para a vida adulta, mas que carece de vida e empatia junto ao espectador. Apesar do belo visual, um filme muito aquém dos que já nos proporcionou a parceria Gaiman-McKean.

18.5.06

A Noiva Síria

The Syrian Bride, de Eran Riklis, França/Alemanha/Israel,2004 - Cabine

Muitos são os filmes que têm retratado as disputas entre Israel e Palestina, mas A Noiva Síria se diferencia não apenas pela mudança geográfica do conflito (desta vez localizado na fronteira entre Israel e Síria e envolvendo uma comunidade drusa[1]) como também pela atenção e carinho despendidos na construção de suas personagens.
Neste novo filme do israelense Eran Riklis, baseado no roteiro da palestina Suha Arraf, antes dos grandes conflitos geopolíticos, existem os pequenos dramas pessoais. As personagens de Riklis não são meros fantoches para ilustrar a tensão no Oriente Médio, mas possuem vidas e dilemas próprios. Emulando a batalha de seus próprios países, as personagens de A Noiva Síria – em especial as mulheres, foco principal do filme – lutam também elas para lidarem com as barreiras que lhes foram impostas. Assim, Mona, a noiva do título, luta para superar a burocracia kafkiana que a impede de concretizar seu casamento, sua irmã Amal (interpretada por Hiam Abbass, conhecida do público brasileiro por suas atuações em Munique, Free Zone e Paradise Now) esforça-se para vencer o preconceito de seu marido e da sociedade para poder prosseguir com seus estudos enquanto sua filha enfrenta o pai em nome de uma paixão adolescente.
Obviamente a situação socio-política da região não serve apenas como pano de fundo para o enredo, mas entrelaça-se, invade e interfere na vida dessas personagens. Isso se nota desde a primeira seqüência do filme, onde Mona, já com seu vestido de noiva, caminha pelas ruas do bairro repletas de bandeiras negras, luto pela morte do presidente sírio, e se prolongará ao longo do filme, nas diversas dificuldades criadas em torno de seu casamento em função de sua situação peculiar: apesar de serem ambos drusos, a noiva vive nas colinas de Golã, território ocupado por Israel desde 1967, enquanto o noivo mora na Síria, fazendo com que o casamento deva ser realizado em território neutro, na fronteira entre os dois países e sob a supervisão da Cruz Vermelha.
Por vezes, a multiplicidade de histórias paralelas e a complexidade da situação vivida pelas personagens torna o filme um pouco confuso e faz com que algumas histórias não sejam satisfatoriamente desenvolvidas (como no caso do relacionamento entre uma francesa voluntária da Cruz Vermelha e o irmão galanteador da noiva), mas a simpatia que o filme reserva a todas as suas personagens, recusando-se a estigmatizar vilões ou vítimas, acaba por compensar essas deficiências.
Ao final, Riklis aposta na perseverança e coragem individual como uma possível saída para os impasses gerados pelas políticas equivocadas no Oriente Médio. Sem pretensões de ser um retrato definitivo dos impasses da região, A Noiva Síria consegue misturar conflitos pessoais, políticos e culturais sem tornar-se didático ou enfadonho e, ao mesmo tempo, sem deixar de dar o devido peso e importância a uma questão tão complexa.
[1] Os drusos são uma comunidade sem pátria (vivem principalmente no Líbano, Israel, Síria e Jordânia), não são considerados muçulmanos nem cristãos (embora sua religião seja influenciada por ambas) e, devido às perseguições religiosas que já sofreram, costumam dissimular sua própria origem (assumindo a religião dos locais onde vivem e mantendo suas próprias convicções em segredo).

16.5.06

Cinética

Acaba de entrar no ar a mais nova revista eletrônica de crítica cinematográfica da Internet brasileira: a Cinética. A revista é capitaneada por Cléber Eduardo (crítico com passagem pelas revistas Época e Contracampo, diretor do curta-metragem Almas Passantes), Eduardo Valente (ex-editor da Contracampo, diretor dos curtas Um Sol Alaranjado, Castanho e O Monstro, todos selecionados para diferentes seções do Festival de Cannes) e Felipe Bragança (crítico com atuação de cinco anos na Contracampo, diretor dos curtas Por Dentro de uma Gota d’Água, O Nome Dele (O Clóvis) e Jonas e a Baleia).
O currículo de seus editores já demonstra o principal diferencial dessa empreitada: a estreita relação entre a produção e a reflexão cinematográfica. Para entenderem um pouco melhor os objetivos da revista, segue um trecho do editorial desta primeira edição:
CINÉTICA ambiciona ser um espaço de troca de pensamentos – não sem dúvidas, porque a escrita, essa atividade a qual nos dedicamos, é uma dança com a dúvida. CINÉTICA é nutrida pelo desejo por essa dança, um desejo às vezes até aparentado da certeza, tamanha a convicção nele mesmo, nos estímulos, em nossa atividade e na discussão como ferramenta de crescimento – mas sabendo que, sem a dúvida, a crítica é sepultada no jazigo dos dogmas, onde não se aceita o movimento livre das idéias.
CINÉTICA é um site empenhado em manter um diálogo direto e franco com o audiovisual e seus realizadores. Nossas intervenções abrangerão desde ensaios sobre dilemas estruturais a comentários urgentes sobre filmes, programas de TV, videogames e projetos para internet.
A criação de poros, de um espaço de troca constante entre o esforço crítico e o esforço de realização de imagens, nos parece crucial para a maturidade e a vivacidade do cinema, em especial no universo brasileiro, demarcado por disputas políticas e econômicas que levam as discussões a acontecer fora das obras audiovisuais e não por dentro delas.
Por isso mesmo, não é acaso a situação de críticos-realizadores (ou realizadores-críticos) dos três editores, que vivem na pele o constante e saudável embate dos dilemas dos criadores com os da reflexão sobre as obras criadas. Esperamos que este teor altamente metalinguístico de nossa relação entre criação e reflexão transpire nas páginas virtuais desta revista. Da mesma forma, vários dos componentes de nossa redação já passaram ou ainda passam pela realização audiovisual, nas mais diversas formas.
Fui convidado a fazer parte da redação dessa nova revista e aceitei o desafio com enorme prazer. A partir de hoje, portanto, além de meus textos regulares aqui no Enquadramento e no Cinequanon, vocês poderão encontrar outros textos inéditos na Cinética.
Esta primeira edição já conta com os seguintes textos meus:
  • Tempo de Guerra, de lama e caos – uma nova análise de Veneno da Madrugada, de Ruy Guerra;
  • Imagem sob Suspeita – sobre Caché, de Michael Haneke;
  • Brasília, My Love – sobre o retrato de Brasília feito por dois filmes recentes: Brasília 18%, de Nelson Pereira dos Santos, e A Concepção, de José Eduardo Belmonte;
  • Em Nome do Pai – sobre a representação da figura paterna em alguns filmes contemporâneos: A Vida Marinha com Steve Zissou (Wes Anderson), Flores Partidas (Jim Jarmusch), Estrela Solitária (Wim Wenders), Chaves de Casa (Gianni Amelio), A Criança (irmãos Dardenne) e Reis e Rainha (Arnaud Desplechin);

Vale a pena uma visita demorada ao site, que além de críticas para praticamente todos os filmes nacionais que estrearam este ano, conta com alguns ensaios muito interessantes, como o de Kleber Mendonça Filho sobre as visões do Sertão pelo cinema brasileiro contemporâneo, o de Cléber Eduardo sobre como o Brasil atual é visto pela ótica de cineastas veteranos e o de Felipe Bragança sobre o retrato da periferia desenhado por programas como Central da Periferia e Falcão – Meninos do Tráfico.

11.5.06

A Concepção

A Concepção, de José Eduardo Belmonte, Brasil,2005 - Cabine

Quando o plano piloto de Brasília foi concebido por Lúcio Costa no final da década de 50, a cidade tinha um objetivo claro: ser um espaço ordenado e prático para tornar-se o “cérebro das altas decisões nacionais”, segundo o próprio Juscelino Kubitscheck. Chegou-se a um tal nível de detalhes em seu planejamento a ponto de se estipular o modelo e cor dos táxis que deveriam circular na capital federal e orientações quanto ao paisagismo dos cemitérios a serem construídos.
Entretanto, em meio a tal preciosismo, uma variável dessa equação acabou sendo menosprezada na construção da cidade: seus habitantes. Brasília se mostrou um espaço contraditoriamente claustrofóbico e asfixiante, principalmente para os jovens que lá nasceram ou para lá foram em função de cargos públicos de seus pais. A reação dessa juventude não tardou a aparecer, indo do surgimento de bandas inicialmente punks como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude nos anos 80 (representantes da primeira geração de jovens nascidos em Brasília) aos jovens ricos e entediados que ficaram famosos por seus atos de vandalismo (como no caso do índio Pataxó incendiado vivo em 1997). Pois é essa juventude – e sua relação com Brasília – o foco de A Concepção, do também brasiliense José Eduardo Belmonte.
Belmonte realiza com Brasília um procedimento muito similar ao realizado com Porto Alegre pelo pessoal da Casa de Cinema na década de 80, trazendo uma cidade longe dos cartões postais e mais próxima daquela vivenciada por seus habitantes. A Brasília de A Concepção não é aquela da Esplanada dos Ministérios ou dos políticos, mas sim seus subterrâneos (não por acaso o nome do primeiro longa-metragem de Belmonte, ainda inédito no circuito comercial): uma Brasília das drogas, das festas, da rebeldia, das orgias.
O concepcionismo criado pelo filme é, em teoria, um movimento libertário, de negação de uma identidade em prol de identidades múltiplas, mutáveis, adaptáveis. “Ser tudo, de todas as maneiras e a cada minuto”, proclama X (Matheus Nachtergaele), criador desse movimento bastante devedor de um certo psicodelismo dos anos 60/70, impressão essa reforçada pela presença de David Bowie na trilha sonora. Na prática, o que temos é algo muito próximo a Os Idiotas, de Lars von Trier (um grupo de pessoas adotando um estilo de vida radical em suas propostas como forma de reação à sociedade onde vivem), encenado pelo Teatro Oficina (nu, drogas, sexo, provocação).
Iniciando o filme com imagens de arquivo da construção de Brasília, Belmonte reivindica aquele espaço como origem do mal estar que retrata. Filhos de diplomatas, de políticos, jovens bem nascidos, os concepcionistas buscam no hedonismo a compensação para a falta de motivação e perspectivas causadas por seu status, justificando-se através de uma pseudo-filosofia contestadora, com todos os slogans e frases de efeito a que se tem direito. Contraditoriamente, na busca por uma libertação através do individualismo extremo, esses jovens acabam encontrando no grupo um apoio para suas experiências e em X a figura paterna que não possuem no núcleo familiar. Apesar do bom trabalho dos atores (em sua maioria iniciantes), os personagens possuem pouca profundidade e, à exceção daqueles interpretados por Nachtergaele e pela grata (e bela) surpresa Rosanne Hollan, pouco atraem a atenção do espectador.
Se A Concepção começa com força, interessante e promissor, causando impacto pelas imagens e diálogos que são lançados ao espectador, infelizmente ao longo da projeção percebemos que o radicalismo temático do filme não se estende à sua proposta estética, cuja "modernidade" se resume a cortes ágeis – numa bela montagem de Paulo Sacramento, devidamente premiada no Festival de Brasília –, ao uso de diversos suportes ao longo do filme (35mm, vídeo, Super 8 etc) e a uma câmara na mão que por vezes fica desfocada. Apesar do bom início, falta objetividade e fôlego ao filme para sustentar suas propostas até o final.
Como apontou o crítico Luiz Zanin Oricchio, A Concepção faz parte daquele grupo de filmes que Ruy Guerra definiu como “cheios de criatividade, imperfeitos, incompletos e encantadores por isso mesmo”. Infelizmente, no caso de A Concepção, talvez imperfeito demais.