28.3.06

O Plano Perfeito

Inside Man, de Spike Lee, EUA, 2006 - Cabine

Spike Lee é hoje um dos mais polêmicos e controversos cineastas norte-americanos. Diretor de obras como Faça a Coisa Certa, Febre da Selva, Malcom X e O Verão de Sam, Lee sempre teve uma circulação restrita no Brasil, com filmes sendo lançados com poucas cópias ou mesmo diretamente em vídeo.
O Plano Perfeito é um caso a parte na filmografia do diretor, seja pelo seu lançamento mais amplo em telas brasileiras, seja por se tratar de seu projeto mais comercial até o momento (o que por si só já justifica a primeira constatação). Assim como Cronenberg em Marcas da Violência, Lee se referenciou a um gênero já tradicional (no caso, os filmes de assalto a banco) para subvertê-lo, de modo a trabalhar determinadas questões que lhe interessam. Infelizmente, o plano perfeito de Spike Lee acabou dando errado.
Os problemas já começam no trailer do filme, que entrega uma das principais sacadas do roteiro: o plano dos assaltantes para despistar e confundir os policiais. Essa mesma surpresa acaba sendo sub-aproveitada pelo diretor, que restringe a dúvida aos policiais, deixando o espectador plenamente consciente do que ocorre com os reféns e assaltantes. Opção muito mais interessante seria se o diretor estendesse a confusão dos policiais ao espectador.
Outro ponto que enfraquece o filme é a montagem intercalada entre as cenas que ocorrem durante e após o assalto. Tal escolha acaba esvaziando o suspense de uma situação dramática, reduzindo-o a um olhar mais afastado, que aguarda por um desfecho já conhecido de antemão.
Como não poderia deixar de ser em um filme de Spike Lee, a questão racial permeia toda a trama, mas neste filme de uma forma mais sutil que de hábito na obra do diretor. Nesse sentido, entretanto, O Plano Perfeito se aproxima perigosamente de outro filme: Crash (o polêmico vencedor do Oscar deste ano), ainda que de maneira infinitamente menos esquemática e preconceituosa. Mas lá está o sikh (adepto da religião fundada na Índia durante o século XV) indignado por ser freqüentemente confundido com árabes, a mulher branca arrogante e tagarela, a albanesa exótica e interesseira, o garoto negro adepto dos videogames violentos e que não sente medo de nada “por ter crescido no Brooklin” (como o próprio diretor).
Além de apelar para certos esteriótipos na construção dessa diversidade racial tipicamente nova-iorquina, Lee ainda insere esses conflitos raciais de maneira muitas vezes artificial na trama, como no caso do policial que teve uma arma apontada contra o peito por um garoto “afro-americano”.
Apesar de tudo, o filme possui belos momentos, devidos principalmente ao roteiro engenhoso (estréia elogiável de Russell Gewirtz), a um ritmo preciso (cortesia de Barry Alexander Brown, colaborador de longa data de Spike Lee na edição), uma trilha sonora marcante (que inclui um remix de um dos grandes hits de Bollywood, “Chaiyya Chaiyya”) e um elenco inspirado (Denzel Washington, Clive Owen, Jodie Foster, Christopher Plummer e Willem Dafoe), o que o torna um entretenimento muitas vezes interessante. Mas em se tratando de Spike Lee, isso é muito menos do que se poderia esperar.

23.3.06

A Máquina

A Máquina, de João Falcão, Brasil, 2005 - Cabine

Às vezes as boas surpresas vêm de onde menos se espera. Diler Trindade é hoje um dos maiores produtores brasileiros de cinema, cujos filmes já atingiram a marca de mais de 30 milhões de espectadores. Os números superlativos, entretanto, restringiam-se até agora à quantidade, uma vez que suas produções estavam longe de serem dignas de nota: os filmes-franquia de Xuxa, Didi, Padre Marcelo Rossi, Angélica, entre outros. E quanto à qualidade? Nas palavras do próprio Diler: “entendo-a como um conceito relativo. Como gosto não se discute, o que seria do amarelo se todos gostassem do azul, ou da mortadela se todos gostassem de caviar”.
A Máquina, longa de estréia de João Falcão produzido por Diler Trindade, não chega a ser a obra redentora da filmografia do produtor, mas é seu primeiro movimento em busca de uma nova equação: e se misturássemos o azul ao amarelo e oferecêssemos um bom presunto ao invés da mortadela? Será que o público não responderia à altura?
Baseado no livro homônimo de Adriana Falcão (já adaptado também para o teatro), A Máquina conta a história de amor entre Antônio (Gustavo Falcão) e Karina (Mariana Ximenes), moradores de uma pequena cidade do sertão nordestino que tem visões opostas sobre seus destinos: ele quer construir sua vida em Nordestina, ela quer ganhar o mundo e tornar-se atriz. Para não perde-la, Antônio promete trazer o mundo até ela, e para isso desafia o tempo e a morte.
João Falcão opta por uma estética próxima a mini-séries da Globo como O Auto da Compadecida (que roteirizou) e Hoje é dia de Maria para criar um tom de fabula à narrativa, para o que colabora também a cenografia de Marcus Figueiroa, com a cidade de Nordestina inteiramente recriada em estúdio, e a fotografia de Walter Caravalho, de cores fortes e vibrantes.
Os belos diálogos se aproximam da literatura de cordel e a ótima trilha sonora, composta pelo DJ Dolores e que inclui uma canção inédita de Chico Buarque, apropria-se da música nordestina, modernizando-a. O filme aposta nesse diálogo com uma cultura regional, ainda que estilizada, para ampliar seu apelo junto ao grande público.
Infelizmente o filme perde em alguns momentos seu ritmo (apressando-se ou arrastando-se sem nenhum motivo aparente) e em outros, a famosa “estética Diler” acaba sobrepondo-se à do diretor, prejudicando o filme pelo apelo a um popular excessivamente simplório e parvo, como nos trechos de musicais intercalados ao longo do filme ou nas reações desmesuradas dos personagens que ouvem o relato da história de um Antônio envelhecido (Paulo Autran, em uma atuação impecável como de costume).
Apesar dos percalços, A Máquina é um bom entretenimento, leve e despretensioso, que, diferentemente da maioria dos exemplares do gênero, não ofende ao espectador mais exigente. Uma bela tentativa de um cinema popular de qualidade que merece encontrar seu público.

16.3.06

O Veneno da Madrugada

O Veneno da Madrugada, de Ruy Guerra, Brasil, 2005 - Cabine

Ruy Guerra é hoje, juntamente com Júlio Bressane, um de nossos cineastas mais radicais e experimentais. Devido a essa característica, seus filmes nem sempre tiveram um grande apelo de público, mas quase sempre encontraram grande repercussão junto à crítica nacional e internacional (Guerra já teve quatro filmes selecionados para o Festival de Berlim – sendo que Os Fuzis e A Queda foram premiados com o Urso de Prata – e três para o Festival de Cannes, incluindo Estorvo, sua adaptação do romance homônimo de Chico Buarque).
Com O Veneno da Madrugada, Ruy Guerra chega a seu 25o longa-metragem e quarta adaptação da obra de Gabriel García Márquez. O romance do escritor colombiano – intitulado La Mala Hora e que precede seu grande clássico Cem Anos de Solidão – relata a vida dos habitantes de um pequeno povoado (governado por um alcaide simultaneamente patético e ameaçador, interpretado no filme por Leonardo Medeiros) que se vê subitamente infestado de bilhetes anônimos que expõem os segredos de seus habitantes.
Em sua adaptação do livro, Guerra dá continuidade ao radical trabalho de linguagem realizado em Estorvo e compõe em O Veneno da Madrugada uma narrativa em “camadas”, onde a mesma história é contada três vezes, com acontecimentos e desfechos diferentes. Ligando as três histórias, uma vidente de circo que parece saída de um filme de David Lynch fala sobre flechas do tempo que são lançadas em diferentes direções. Não se trata neste caso de visões diferentes de uma mesma história (como em Rashomon, de Kurosawa) ou de uma composição onde apenas uma história é verdadeira e as demais são frutos de sonhos ou imaginação. No caso do mais recente filme de Ruy Guerra, cada história é tão verdadeira e real quanto as demais, e se sobrepõem de uma maneira aparentemente impossível e contraditória. Em entrevistas recentes, o diretor afirma ter baseado a construção dramática de seu filme em princípios da física quântica, que permitem que um mesmo evento ocorra simultaneamente em lugares diferentes e com resultados diversos.
Ruy Guerra buscou uma narrativa anti-naturalista para seu filme e apostou na criação de um clima de estagnação e decadência para passar o sentimento dos habitantes dessa cidade imaginária. Para atingir tal resultado, utilizou com precisão as ferramentas a seu dispor: a fotografia de Walter Carvalho prioriza o monocromático, puxando todas as cores para uma tonalidade marrom, desgastada – como a da lama causada pela chuva que assola ininterruptamente o povoado –, e a cenografia e figurino acompanham esse mesmo conceito visual. A trilha sonora é composta basicamente de ruídos de cena amplificados e os diálogos foram todos dublados, nem sempre pelo mesmo ator que interpreta o papel.
Tais opções criam uma resistência inicial no espectador acostumado a uma narrativa mais tradicional e esse será um dos grandes desafios do filme junto ao público, desafio esse com o qual Ruy Guerra já está acostumado, por ser um dos poucos diretores mais fiéis à linguagem que desenvolve do que aos ditames do mercado.
Obra radical e perturbadora, Veneno exige do espectador um despir de hábitos e um mergulho profundo na experiência de um artesão do cinema. Embora não atinja a pegada e maestria de Estorvo, trata-se de um dos melhores exemplares de cinema autoral produzido no Brasil nos últimos anos.

10.3.06

O crash do Oscar, ou o Oscar de Crash

Páginas e mais páginas foram escritas nesta última semana sobre a derrota de O Segredo de Brokeback Mountain para Crash - No Limite na última cerimônia do Oscar. A maior parte das vezes falou-se em uma recaída retrógrada e homofóbica dos votantes, que não tiveram a “coragem” de votar na história de amor entre dois caubóis de Ang Lee como melhor filme do ano.
Mas, por mais adepto que se seja a teorias da conspiração, é difícil imaginar um grupo de velhos senhores de Hollywood maquiavelicamente reunindo-se para barrar a “onda gay” que ameaçava varrer os EUA, como se fossem cavaleiros em uma cruzada pela moral e os bons costumes.
Primeiro porque os famosos “velhinhos” da Academia já nem são tão velhinhos assim, já que a Academia tem se rejuvenescido ao longo dos últimos anos. Em segundo lugar porque Hollywood ainda é um dos recantos mais liberais dos Estados Unidos, e para comprovar isso basta ver os próprios indicados para a premiação deste ano.
Embora tenha-se buscado os motivos para a derrota de Brokeback Mountain, pouco se analisou o porquê dos votantes da Academia terem optado por Crash em seu lugar. Afinal de contas, qualquer um dos outros três candidatos (Boa Noite e Boa Sorte, Munique e Capote) seriam mais dignos da estatueta do que o preferido pela Academia e não levantariam tanta indignação entre os amantes da sétima arte. Mas, ao invés disso, foi eleito um filme que já era motivo de piadas simplesmente por constar entre os principais indicados e que, para muitos, é na verdade considerado um dos piores filmes do ano e, provavelmente, o pior já agraciado com o prêmio máximo do Oscar em seus 78 anos de história. Mas então, o que aconteceu?
A verdade é que houve sim preconceito por parte dos membros da Academia em relação a Brokeback Mountain, mas não devido à sua temática homossexual ou seu potencial transgressor (ademais deveras pequeno). No caso da premiação deste último domingo, o preconceito foi em relação à narrativa extremamente clássica do filme de Ang Lee. Pois o diretor optou em filmar a história de amor entre Ennis Del Mar e Jack Twist como os grandes melodramas de antigamente, de maneira sincera e apaixonada, sem truques de roteiro ou uma fotografia e montagem “espertas”, manias tão comuns aos filmes ditos “modernos”. E isso assustou aos votantes como um fantasma de tempos passados, um retrato de Dorian Gray a mostrar para Hollywood a grandiosidade e glamour que um dia já teve e que já não consegue mais repetir.
Incomodados com o retorno em plena forma de uma linguagem que há tempos acreditavam extinta, os votantes buscaram refúgio em sua zona de conforto, ou seja, no filme que – entre os candidatos à estatueta de melhor filme – mais se enquadrava em suas expectativas de uma obra contemporânea hollywoodiana, um filme com o qual pudessem se identificar esteticamente e que ainda pudessem lhe imprimir um status de engajamento político e social. Em resumo, um cinema feito por eles e para eles.
Pois Crash é o filme que responde à imagem que Hollywood gostaria de ver de si própria – “espelho, espelho meu” –, por mais que essa imagem seja construída de forma maniqueísta e seja como os cenários dos velhos filmes de faroeste, onde as fachadas dos prédios serviam para esconder o vazio que se encontrava por trás delas: um roteiro “complexo” (mas que permita uma fácil compreensão por parte do espectador), um elenco estelar (mas escalado para um filme “independente”, cobrando uma parcela ínfima de seu cachê habitual em prol de uma “causa”), um enredo “contemporâneo” (e não um filme de época como os demais concorrentes), e enfim, um filme que nos mostre as injustiças do mundo de forma clara e direta, um pequeno mea-culpa para que possamos dormir tranqüilos à noite por termos feito uma avaliação de consciência, sem que para isso precisemos mudar um milímetro a forma como vemos o mundo ou como atuamos dentro dele (afinal de contas, a moral final de Crash se aproxima muito de um “não se preocupe, pois somos todos um pouco racistas, e esse é o equilíbrio possível”).
Some-se a isso o fato de que Crash é uma história sobre e filmada em Los Angeles (lar de 80% dos membros da Academia, numa época em que as produções – e conseqüentemente os empregos – têm sido transferidas para locais mais baratos, como o Canadá) e temos um panorama geral dos motivos que levaram à derrota de Brokeback Mountain e à escolha de Crash em detrimento dos outros três candidatos remanescentes.
Para aqueles que buscam motivos escusos nas escolhas da Academia, que apontem o dedo para o prêmio de melhor filme estrangeiro (pouco comentado que foi, eclipsado pelo efeito-Crash), onde – independentemente da qualidade dos concorrentes – Paradise Now foi tendo suas chances minadas por um lobby fortíssimo da comunidade judaica contra o representante dos “territórios palestinos”, exigindo sua exclusão da competição para conseguir, como consolação, sua não-premiação.
No caso do prêmio máximo da noite, os motivos podem ser muito mais simples do que as análises iniciais demonstram e, por isso mesmo, muito mais lamentáveis e reveladores.

3.3.06

Mentiras Sinceras

Separate Lies, de Julian Fellowes, Reino Unido, 2005 - Cabine

“Se quiser que algo seja bem-feito, faça você mesmo”. Infelizmente, o famoso ditado popular não se aplica a Julian Fellowes. Premiado com o Oscar de Melhor Roteiro Original por Assassinato em Gosford Park – uma bela homenagem a A Regra do Jogo de Renoir, dirigida por Robert Altman –, Fellowes estréia na direção com este equivocado Mentiras Sinceras, cujo roteiro adaptou do romance A Way Through the Wood, de Nigel Balchin.
Enquanto Hitchcock conseguia realizar verdadeiras obras-primas baseadas em romances cuja qualidade literária era no mínimo duvidosa – caso, por exemplo, de Rebecca –, Fellowes pegou essa história de 1951 sobre um casal de meia-idade em crise, adicionou uma trama policialesca ao enredo e saiu-se com um filme cuja razão de ser escapa completamente a qualquer compreensão.
A comparação com Hitchcock não é gratuita. Fellowes parece buscar inspiração no mestre do cinema para realizar seu retrato da elite britânica, utilizando-se fortemente da música para pontuar o suspense. Entretanto, o diretor parece não ter tomado nota corretamente das lições de seu conterrâneo. Dividido entre o questionamento moral do drama conjugal e o suspense da trama policial, Fellowes não desenvolve nenhum dos dois a contento, deixando o espectador à deriva em busca de algo a que se apegar no filme.
No roteiro de Fellowes, James e Anne Manning formam um casal aparentemente feliz até que Bill Bule, um jovem aristocrata que acaba de retornar dos EUA, começa a freqüentar as festas organizadas por eles. Na noite de uma dessas festas, uma pessoa morre após ser atropelada em um acidente cujo culpado foge da cena do crime. Suspeitando do envolvimento de Bill, James está prestes a entregá-lo à polícia quando descobre que quem estava dirigindo o carro de Bill naquela noite era sua esposa, que vinha mantendo um caso extra-conjugal com ele. Tentando desesperadamente manter sua esposa e as aparências, James submete-se a todo tipo de humilhação e passa a fazer parte de uma rede de mentiras para encobrir o envolvimento de Anne no crime, sendo obrigado inclusive a aceitar sua relação com Bill.
Apesar do bom elenco – Emily Watson (Ondas do Destino, Hilary & Jackie), Tom Wilkinson (Ou Tudo ou Nada, Entre Quatro Paredes) e Rupert Everett (O Casamento do Meu Melhor Amigo, Memórias de um Espião) – os dilemas morais dos personagens não convencem, parecendo mais estratégias para desenvolver a trama do que questionamentos sinceros, e o suspense do enredo tão pouco funciona, por se mostrar excessivamente manipulador e previsível.
Preocupado com o “labirinto moral” que pretendeu criar, Fellowes esqueceu de tornar seus personagens pessoas reais, com sentimentos e emoções sinceros com os quais o espectador pudesse se identificar. Em um filme que depende fundamentalmente dessa empatia entre o espectador e os personagens, um erro como esse torna-se fatal.