26.1.06

Crime Delicado

Crime Delicado, de Beto Brant, Brasil, 2005 - Frei Caneca Arteplex

De uma coisa Beto Brant não pode ser acusado: acomodar-se a uma fórmula que lhe consagrou. Com seu mais recente filme – Crime Delicado, que tem dividido a crítica nos festivais e mostras por onde passou –, o diretor rompe com seus trabalhos anteriores (Ação Entre Amigos, Os Matadores e O Invasor, que se utilizavam de cores fortes, câmera inquieta, uma montagem ágil e trilhas sonoras marcantes para retratar a violência) de modo a realizar aqui um filme contido, de contemplação, um estudo sobre a arte – passando pelo teatro, literatura e artes plásticas – e a apreensão da vida através dela. É como se Tarantino resolvesse dirigir Razão e Sensibilidade.
Mas Crime Delicado não é apenas um estudo sobre a arte, sobre quem a faz, vive em função dela, escreve sobre ela ou, em seus momentos mais hilários, sobre os tipos que gravitam em torno dela e derramam suas angústias e expectativas numa mesa suja de bar. O filme é, acima de tudo, uma apologia à paixão e à imperfeição, não apenas na arte, mas em todos os campos da vida.
Para isso, Beto Brant recorreu à arte do instante, do imediato, onde o risco é iminente e o erro, inevitável: o teatro. O filme parte da história de uma paixão entre um crítico teatral apolíneo (interpretado por Marco Ricca, que adquiriu os direitos do livro homônimo de Sérgio Sant’Anna e propôs sua adaptação a Beto Brant) e uma jovem modelo dionisíaca (Lílian Taublib, estreando com coragem no cinema) para expandir o teatral a todo o filme: da mis en scène às atuações, passando pelos ótimos diálogos (em grande parte improvisados pelos próprios atores). A coerência dessa escolha só é rompida quando o filme equivocadamente nega essa construção ao optar, em alguns momentos, pelo jogo de campo e contracampo, estrutura tipicamente cinematográfica e contraditória à experiência teatral que se tentava passar, onde a visão do espectador pode flanar livremente por todo o espaço cênico.
Não é que Beto Brant esteja aqui em um terreno que lhe é completamente estranho – o tesão, a tensão e a paixão de seus filmes anteriores continuam presentes, embora de forma latente, e quem se lembra da cena de Os Matadores em que Chico Diaz aguarda ansiosamente o ônibus de sua vítima chegar sabe da magnitude que o diretor consegue atingir com a câmera parada (recurso utilizado na integralidade de Crime Delicado) –, mas com este filme ele consegue alcançar uma delicadeza, ainda que viril, que não podia ser prevista baseando-se em sua filmografia disponível até então.
Confortável no papel passivo de observador e avaliador (não apenas da arte, mas principalmente da sociedade ao seu redor), Antônio Martins (o personagem de Ricca) se vê obrigado, diante de sua abrupta paixão por Inês, a não apenas aceitar a imperfeição, mas a se entregar irrestritamente a ela. Os cenários – sempre internos, noturnos, em ambientes fechados – e a iluminação reforçam a visão de mundo do protagonista, que apreende a realidade como o faz com uma peça de teatro, apontando as falhas em tudo a seu redor, na eterna busca da perfeição. Sem vivência para guiá-lo através desses sentimentos conflituosos (solitário, sua experiência se resume às montagens que analisa, como Confraria Libertina, Woyzeck, O Brasileiro e Leonor de Mendonça, peças que remetem ao desejo e ao ciúmes e que possuem trechos intercalados ao filme), Martins começa a se afundar em suas neuroses, em uma vertigem que o levará ao crime que dá nome ao filme.
Se o novo filme de Beto Brant é imperfeito – e ele o é –, só resta ao espectador mergulhar nessa imperfeição, deixando preconceitos e expectativas para trás, para sair grato e enriquecido dessa experiência. Com Crime Delicado, Brant será tachado por muitos como arrogante ou pretensioso, mas é o preço a ser pago por aqueles que, como o diretor, se arriscam e não aceitam entregar mais do mesmo a um público ávido por ser enganado e arredio ao desafio.

12.1.06

Soy Cuba - O Mamute Siberiano

Soy Cuba - O Mamute Siberiano, de Vicente Ferraz, Brasil, 2005 - Reserva Cultural

Um documentário normalmente é admirado pelo público por um entre três fatores: a temática de que trata – a despeito das falhas do documentário enquanto linguagem (Doutores da Alegria, por exemplo) –, a qualidade e coerência estrutural do filme propriamente dito – mesmo que sua temática pudesse, em um primeiro momento, não parecer tão interessante (Edifício Master)–, ou por um equilíbrio entre os dois fatores (Nelson Freire). Soy Cuba – O Mamute Siberiano, de Vicente Ferraz, enquadra-se na primeira categoria: conta a fascinante história do filme Soy Cuba, de Mikhail Kalatozov, primeira e única co-produção entre Cuba e a extinta União Soviética, mas de uma forma lacunar e padronizada.
Em 1o de janeiro de 1959 as forças lideradas por Ernesto “Che” Guevara e Camilo Cienfuegos chegavam a Havana e conflagravam a vitória da Revolução Cubana. Intelectuais de todo o mundo começaram a aportar na ilha – Godard, Chris Marker, Cesare Zavattini, Joris Ivens –, ávidos por registrar a revolução socialista em pleno curso em uma ilha tropical. As mudanças estendiam-se a todas as áreas, principalmente a cultural, e nesse sentido o novo governo criou o ICAIC – Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos – para criar as bases de um novo cinema cubano, popular e revolucionário. Três anos depois a União Soviética, uma das maiores interessadas no sucesso e difusão da Revolução Cubana, envia para Cuba um de seus grandes cineastas, Mikhail Kalatozov (que poucos anos antes havia levado a Palma de Ouro em Cannes pelo filme Quando Voam as Cegonhas), com a missão de realizar o que seria um grande poema épico, uma ficção dividida em quatro atos, em homenagem à Revolução, que iria maravilhar e, quiçá, converter o mundo para as benesses do socialismo. Kalatozov ainda levou para a ilha seu colaborador usual Sergei Urusevsky como diretor de fotografia e o grande poeta russo Yevgeni Yevtushenko como roteirista, além do que de mais moderno havia em termos de tecnologia, incluindo filmes infravermelhos – até então exclusividade do exército soviético.
Foram dois anos de imersão na cultura cubana, de gastos e privilégios astronômicos, e de filmagens que resultaram em algumas das seqüências mais impressionantes da história do cinema. Impossível por exemplo, mesmo para o espectador mais leigo, não ficar completamente estarrecido diante da engenhosidade de seqüências como a do funeral do estudante (incluída neste documentário). Apesar disso, o filme foi um retumbante fracasso, tanto em Cuba (onde foi acusado de ser uma visão estereotipada e falsa dos cubanos, numa polêmica semelhante à que envolveu Orfeu Negro, de Marcel Camus, aqui no Brasil) quanto na União Soviética, onde a ênfase artística do filme e seu retrato atraente da Cuba pré-revolucionária ia contra os interesses políticos daqueles que o financiaram. O filme foi prontamente arquivado e só recebeu o merecido reconhecimento mais de 30 anos depois, quando Francis Ford Coppola e Martin Scorsese o resgataram do ostracismo e o disponibilizaram para o deslumbramento de crítica e público.
O documentário de Vicente Ferraz utiliza-se da clássica estrutura de entrevistas e imagens de arquivo (garimpadas nos acervos do ICAIC) para tentar retratar a história dessa produção, de sua idealização ao reconhecimento tardio. A instigante história desse filme poderia conduzir a uma série de reflexões interessantes, como as diferenças culturais entre os dois povos (russos e cubanos) e como isso influenciou não apenas na produção do filme mas no próprio desenvolvimento do socialismo nos dois países, a possibilidade de se traçar um paralelo entre a história do filme e a da própria revolução cubana, ou ainda o eterno debate sobre a relação entre arte e política e como essa relação se alterou ao longo do tempo (influenciando, inclusive, na percepção do próprio filme), mas o documentário passa ao largo dessas questões.
Outras deficiências do documentário incomodam, como a opção por uma narração ostensiva em primeira pessoa, como se a redescoberta desse clássico tivesse sido obra de Ferraz, e a limitação dos depoimentos, que nunca vão muito além da impressão dos poucos entrevistados sobre Soy Cuba (todos ligados, de uma forma ou de outra, à sua produção), no que o tempo também teve sua culpa, devido à morte, entre 1973 e 1974, do diretor Kalatozov, de sua esposa Belka (que trabalhou na produção do filme como assistente de direção) e do diretor de fotografia Urusevsky, que poderiam dar depoimentos muito mais interessantes e reveladores sobre a obra.
Fica, após a projeção, a saudade de um tempo em que, como diz Ferraz, “o cinema era um fenômeno social e político de grande importância” e o sonho de um outro mundo ainda era possível. Fica também uma imensa vontade de (re)ver a obra genial de Kalatozov, corroborando a declaração de um dos entrevistados do documentário: “os governos são esquecidos, mas as obras-primas permanecerão”. E isso, ao final, é o que importa.

6.1.06

2046 - Os Segredos do Amor

2046, de Wong Kar-wai, Hong Kong, 2004 - Mostra SP/Cabine

Há filmes com os quais desenvolvemos uma relação extremamente pessoal: alguns nos dão a sensação de um reencontro com velhos amigos, por outros nos enamoramos e assim por diante. Nesse sentido, 2046 seria o equivalente cinematográfico a uma amante: insuportavelmente bela, sensual, misteriosa, que parece flutuar em um tempo e espaço próprios.
Se Amor à Flor da Pele continua sendo sua obra-prima, pela plenitude e precisão com que transmite na tela emoções e sensações aparentemente inexprimíveis, neste seu mais recente filme Wong Kar-wai leva ao extremo, ao limite do esgarçamento, não apenas suas obsessões (tempo, memória, espaço, desejo) como os artifícios que utiliza para trabalhá-las (cenários minuciosos, figurinos deslumbrantes, fotografia maravilhosa, trilha sonora envolvente, atuações magnetizantes).
Em Amor à Flor da Pele, Chow Mo-wan apaixona-se por Su Li-zhen (a esposa do homem com quem sua própria esposa lhe traiu), sem nunca consumar esse desejo, e o fantasma desse amor que poderia ter sido continua assombrando-o em 2046, que encerra a trilogia iniciada em 1991 com Days of Being Wild. Dividido entre a história de ficção científica que está sendo escrita por Chow, misto de memórias e desejos reprimidos, e os relacionamentos no qual ele se envolve a partir de seu quarto de hotel, o enredo tem um papel secundário em 2046, abrindo espaço para a imagem, matéria primordial do cinema que Wong manipula com maestria para nos entregar momentos de puro deleite, criando através dela os mais diversos significados e rimas poéticas, como as espirais que ecoam nos papéis de parede, na escrita de Chow, na fumaça de um cigarro, nas silhuetas das mulheres que passam pelo seu quarto e, finalmente, na imagem síntese do filme, a misteriosa escultura que aparece na primeira e na última cena de 2046.
Assim como o cineasta e teórico russo Andrei Tarkovsky, Wong utiliza-se da imagem para esculpir o tempo. Se em um episódio como A Mão (parte do filme Eros) podemos observar a expansão do tempo a ponto de um curta de 15 minutos parecer um longa metragem, em 2046 essa experiência é levada quase ao paroxismo. Com cenas que são praticamente auto-suficientes, a montagem do filme se abstém de acompanhar uma ordem cronológica (nem mesmo para subvertê-la, como fazem alguns filmes ditos “modernos”), mas é antes uma montagem subjetiva – a subjetividade de Chow, onde o tempo é medido em função das mulheres que passam pela sua vida, e, em última instância, do próprio Wong –, atingindo com isso um efeito próximo à suspensão do tempo, com o filme tendendo ao infinito (como infinitas são as possibilidades de combinações entre essas cenas). Isso ajuda a explicar, em parte, a dificuldade de Wong em terminá-lo: a produção do filme durou cinco anos, sua première em Cannes precisou ser adiada – algo inédito na história do festival – e ainda assim a cópia do filme chegou apenas três horas antes da nova sessão, escoltada por policiais e claramente não finalizada, o que levou o diretor a continuar trabalhando em sua edição mesmo após a primeira exibição.
Essa subjetividade temporal se deve ao enfoque na memória não como um lugar de recordação, mas de vivência. Pois Chow vive em função de uma ferida ainda aberta, um amor não consumado, que anos depois continua influenciado seus relacionamentos, como a reação retardada dos andróides de sua ficção futurista. Nessa sua viagem pela memória, Chow se perde, sem ter em que se apegar, sem conseguir diferenciar a obra que está criando de sua própria vida, tentando esticar ao máximo sua permanência nesse espaço da memória para não mais ter que encarar o presente (2046 é, no livro que Chow escreve, um lugar/tempo para onde se vai em busca de memórias perdidas, e de onde nunca ninguém voltou).
Há ainda a noção do “momento perdido”, da crença de que o verdadeiro romance está ligado à sincronicidade na trajetória de duas pessoas. Em Amor à Flor da Pele Chow teve Su Li-zhen por um instante, mas a perdeu. Em 2046 ele nos diz que “de nada adianta conhecer a pessoa certa muito cedo ou muito tarde”, e essa sua incapacidade de agir em sintonia com seus sentimentos o bloqueia a ponto de não desejar mais assumir compromissos, apenas “emprestando” seu tempo às mulheres com quem convive.
O espaço é outra questão fundamental para Wong Kar-wai, não apenas em 2046 mas em toda a sua filmografia. Neste filme, os ambientes freqüentados pelos personagens são sempre diminutos (corredores estreitos, quartos pequenos) e há pouquíssimas cenas externas, demonstrando o isolamento daqueles personagens, fechados em suas próprias dores e recordações. Trabalhando pela primeira vez em cinemascope, formato que utiliza todo o espaço disponível da tela, Wong paradoxalmente limita nosso campo de visão, enquadrando a cena quase sempre através de um obstáculo (uma parede, um objeto), reforçando essa sensação de isolamento do mundo exterior. Apesar desse isolamento, os cenários e figurinos repletos de cores e formas sugerem o turbilhão de sentimentos e emoções que se embatem no interior desses personagens.
O filme lança, enfim, uma grande expectativa sobre o próximo projeto do diretor (The Lady from Shanghai, com presença já confirmada de Nicole Kidman), pois com 2046 Wong Kar-wai atingiu o que parece ser a quintessência da estética em que vinha trabalhando. Ou o diretor muda sua abordagem para o próximo filme, ou corre o sério risco de ficar preso ao próprio estilo que criou.
Independentemente das obras que o sucederem, 2046 é um objeto fascinante, um filme de climas e imagens que permitem infinitas análises e interpretações, como o Aleph de Jorge Luis Borges, onde de cada ângulo que se observa pode-se admirar todo um novo e complexo universo.

4.1.06

Retrospectiva 2005

Uma lista de melhores filmes do ano que se propõe destacar 10 produções entre as quase 280 estréias em circuito comercial é, por definição, subjetiva, incompleta e volúvel. Subjetiva pois trata-se de um recorte pessoal de uma ampla gama de lançamentos, cuja análise é invariavelmente influenciada pelo momento e pelas condições em que se viu o filme. Incompleta pela impossibilidade de se assistir a todas as estréias e por saber que, em alguns casos, se determinados filmes tivessem sido vistos, poderiam certamente figurar entre os melhores do ano e formar uma nova lista. E, finalmente, volúvel, pois as impressões sobre um determinado filme evoluem e se alteram ao longo do tempo – análises são amadurecidas, opiniões são reconsideradas, novas luzes são lançadas sobre facetas ainda não observadas – o que faz com que alguns filmes subam ou caiam em nosso conceito ao longo do tempo.
Entretanto, trata-se também de um exercício extremamente saudável: fazer uma retrospectiva e reflexão sobre os filmes que se viu ao longo de um ano, detectar convergências ou discrepâncias entre filmes e diretores que se admira, aprofundar a análise sobre determinadas obras. E saímos no fim com a certeza de que fomos injustos, mas que tal injustiça era inevitável. O principal critério, embora não o único, que pautou minhas escolhas foi o impacto que o filme causou quando o vi pela primeira vez. Pois antes de análises técnicas e teóricas, estudos e reflexões, o cinema tem uma capacidade de diálogo direto com o espectador que poucas artes possuem. E é nesse deslumbramento primeiro diante de um filme (que também é influenciado, e muito, pelas qualidades técnicas e teóricas da obra) que me pautei para selecionar meus destaques do ano.
2005 foi um ano com muitos lançamentos de bom nível, tanto de diretores consagrados quanto de estreantes, mas também de muitas ausências, algumas que serão corrigidas em 2006 (como 2046 e Brokeback Mountain) e outras que provavelmente nunca o serão (caso de Last Days, Les Amants Réguliers e Three Times). Algumas boas surpresas, algumas decepções, reencontros com velhos amigos ou descoberta de novos. É curioso notar que muitos dos filmes destacados não chegam a ser o melhor de cada diretor (como no caso de Godard, Cronemberg, Lucrecia Martel, Miyazaki e Coutinho), mas ainda assim são obras de tamanho impacto e força que impressiona a capacidade desses diretores em manter uma produção de qualidade média tão elevada. Alguns filmes foram galgando posições ao longo do tempo, conforme as impressões iniciais iam se enriquecendo (caso de Brown Bunny), outros fincaram seu posto desde o início (como Menina de Ouro) ou, ainda, entraram na lista no apagar das luzes de 2005 (o maravilhoso Reis e Rainha). Há ainda a alegria de dois títulos (que poderiam ser mais) que extrapolaram o gueto do ranking dos filmes nacionais e figuram entre os melhores do ano, independentemente da nacionalidade: a obra-prima Cinema, Aspirinas e Urubus, longa de estréia de Marcelo Gomes, e o mais novo documentário do mestre Coutinho, O Fim e o Princípio.
A existência de um ranking de filmes nacionais, aliás, é justificada pela necessidade de se ressaltar e valorizar o bom momento que estamos vivemos (momento esse devido menos a um fortalecimento da estrutura de produção nacional do que ao talento individual de alguns diretores), e é com enorme alegria que vimos em 2005 o lançamento de dois filmes marcantes, de personalidade, produzidos fora do eixo Rio-São Paulo e que, por si só, já justificariam a descentralização dos recursos aplicados para a produção nacional: o já citado Cinema, Aspirinas e Urubus e Cidade Baixa, ambos filmes de estréia de diretores promissores. Por último, um voto de protesto: Signo do Caos é o derradeiro filme de um dos maiores e mais revolucionários cineastas brasileiros de todos os tempos, Rogério Sganzerla, premiado em Brasília em 2003, lançado postumamente quase três anos depois. O desprezo com que as distribuidoras e o mercado exibidor tratam os filmes que buscam a reflexão, que exploram novas linguagens, que se propõem ser algo além do puro entretenimento, causaram não apenas o longo atraso na estréia do filme, como também o lançamento com pouquíssimas cópias, em circuito reduzido e por poucas semanas. Não vi o filme. É um dos melhores do ano.
TOP 10 de 2005
  1. Menina de Ouro, de Clint Eastwood
  2. Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes
  3. Nossa Música, de Jean-Luc Godard
  4. Marcas da Violência, de David Cronenberg
  5. A Menina Santa, de Lucrecia Martel
  6. Reis e Rainha, de Arnaud Desplechin
  7. Brown Bunny, de Vincent Gallo
  8. Bom Dia, Noite, de Marco Belocchio
  9. O Castelo Animado, de Hayo Miyazaki
  10. O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho

Menção Honrosa: Episódio 531 de CSI, com direção de Quentin Tarantino, que embora não tenha sido exibido na tela grande é cinema em sua melhor forma.

TOP 5 Nacionais

  1. Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes
  2. O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho
  3. Signo do Caos, de Rogerio Sganzerla
  4. Cidade Baixa, de Sérgio Machado
  5. Quase Dois Irmãos, de Lúcia Murat

3.1.06

Reis e Rainha

Rois et Reine, de Arnaud Desplechin, França, 2004 - HSBC Belas Artes

Os rumores sobre a morte do cinema francês têm sido exagerados, e filmes como Caché, de Michael Haneke, Clean, de Olivier Assayas, e Les Amant Réguliers, de Philippe Garrel, estão aí para comprovar não apenas a sobrevivência do cinema francês, como também sua histórica capacidade renovadora (vide a Avant Garde dos anos 20, os clássicos dos anos 40, a Nouvelle Vague dos anos 50/60 e assim por diante). Mas, dos cineastas franceses contemporâneos, aquele que talvez mais bem represente essa nova geração seja Arnaud Desplechin. E seu novo filme, Reis e Rainha, é provavelmente a maior prova de amor – ao cinema e ao público – desse grande cineasta.
Trata-se de uma obra generosa e expansiva, que ama seus personagens sem isentá-los de culpas, pecados ou responsabilidades. Um filme adulto e inteligente sem esquecer o humor e a fluidez, com um grande domínio da linguagem cinematográfica sem deixar essa técnica ser sua razão de ser. Desplechin constrói com Reis e Rainha um belíssimo estudo sobre a família, a paternidade e a hereditariedade, num sentido que transcende o mero drama vivido pelos personagens. E, de quebra, ainda nos presenteia com duas das cenas mais tocantes do cinema em 2005.
A estrutura do filme é relativamente simples: metade dele é focado em Nora (Emmanuelle Devos, atriz fetiche do diretor e ótima neste papel), uma jovem mãe – viúva do primeiro marido, divorciada do segundo e prestes a casar com o terceiro –, gerente de uma galeria de arte, cujo pai está lutando contra um câncer em estado terminal; a outra metade acompanha Ismael (Mathieu Amalric, ator revelado por Desplechin, aqui numa interpretação cativante), o segundo marido de Nora, violinista virtuose e um tanto quanto excêntrico, que se vê internado em um hospital psiquiátrico por solicitação da irmã. E há ainda o epílogo, um presente para nós, espectadores, e para um terceiro personagem em torno do qual a trama evolui em grande parte: Elias, o filho de 10 anos de Nora que foi criado na maior parte de sua infância por Ismael.
Nora está presa a um passado que a atormenta, Ismael tem um futuro incerto. São pessoas egoístas, cada um a sua maneira, debatendo-se contra suas desilusões e medos, buscando no presente uma maneira de amadurecer e aceitar suas responsabilidades. Através de uma câmera curiosa mas sempre respeitosa, acompanhamos a trajetória desses dois protagonistas enquanto interagem com um amplo painel de personagens (no que este filme se aproxima de um certo cinema de P.T. Anderson, como Magnólia), onde se destacam a administradora do hospital onde está internado Ismael, interpretada por Catherine Deneuve, e Louis (Maurice Garrel), pai de Nora.
Desplechin traça uma visão complexa de seus personagens (auxiliado por uma montagem “jazzística”, de colagens e variações em torno dos temas, buscando sempre uma nova faceta, um novo olhar sobre aqueles personagens) e, nesse contexto, não há espaço para uma verdade, um julgamento único sobre aquelas vidas que vemos na tela. Acreditamos saber quem é Nora, para logo depois nos depararmos com um lado desconhecido dela. Temos certeza da decisão que Ismael tomará, mas somos surpreendidos por seu amadurecimento diante de nossos olhos e pelos novos caminhos que isso implica. Não há aqui personagens bons ou ruins, responsáveis ou imaturos, mas tão somente seres humanos, em toda a sua profundidade e complexidade.
A principal questão a perpassar todos esses relacionamentos é a família. Não a família enquanto instituição estabelecida, mas sim uma reconstrução dessa instituição baseada em novos paradigmas: a família por adoção, por opção, por carência ou mesmo a sua impossibilidade. Não à toa, a última cena do filme é o pequeno Elias desenhando sua nova e possível árvore genealógica.
Mas a questão da hereditariedade, da paternidade, transcende o roteiro e é trabalhada também na relação do diretor com seu filme, e deste com a cinematografia da qual faz parte. Pois Desplechin trata o filme como a um filho, amando-o e criando-o para o mundo, para o espectador, e não para si próprio. Pois se trata de uma obra que não esconde seu desejo de ser acessível, de ser amada pelo público, embora exija dele uma entrega semelhante à do diretor e seus atores, entrega essa que será devidamente recompensada ao final da projeção. Da mesma forma, o diretor não tenta manter um controle absoluto sobre o filme (embora seu controle seja admirável), mas, ao contrário, quer que o filme fuja de certo modo à sua influência, que o ultrapasse e cresça até transbordar, como obra plena e independente, pela tela. O mesmo acontece com o filme, que não nega sua filiação à Nouvelle Vague, em especial a de Godard, mas o assume como uma herança adquirida (da mesma forma que um filho nasce com uma fisionomia que remete aos pais) e subverte seus preceitos – a iluminação naturalista, o uso de intertítulos, a montagem que se faz visível, os personagens sendo entrevistados pela câmera, a pontuação das cenas pela música feita de uma maneira não-convencional – utilizando-os não em sua forma original, revolucionária, mas para desenhar um drama claro e acessível.
O filme possui uma infinidade de camadas acessíveis ao público, que pode ir do puro entretenimento à mais profunda reflexão. E é nesse equilíbrio entre o erudito e o popular, entre o desafio e a diversão, a grandiosidade e o cotidiano, que o filme caminha. Desplechin nos entrega uma obra pulsante, transbordando de vida, um filme que aposta na capacidade do cinema de captar a vida em toda sua plenitude e, ao nos devolver esse retrato, permitir enxergar a grandeza do cotidiano.