29.12.05

A Passagem

Stay, de Marc Forster, EUA, 2005 - Cabine

A Passagem, mais recente filme de Marc Forster, remete a obras como Cidade dos Sonhos, Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças e Spider, tratando também ele de temas como os sonhos, a definição de identidades e os limites – nem sempre claros e bem definidos – entre o real e o imaginário, a razão e a loucura.
Diretor dos filmes Em Busca da Terra do Nunca e A Última Ceia, Forster busca criar, neste thriller psicológico sobre um psiquiatra que tenta salvar a vida de um paciente suicida, um clima onírico e atormentado desde o primeiro minuto de projeção, extrapolando para as imagens o processo de questionamento da realidade pelo qual passam os dois personagens principais – o psiquiatra Sam Foster (Ewan McGregor) e o jovem artista plástico Henry Lethem (Ryan Gosling). Para deixar claro ao espectador que se trata de um ambiente onde a lógica e a razão não ditam as regras, o diretor utiliza todo um arsenal de recursos disponíveis, ora de maneira sutil, ora exacerbada: quebras de eixo, imagens deformadas, pontos de vista fragmentados, faux raccords, elipses temporais, uma trilha de fundo constante e discreta de ruídos e vozes, cenários escherianos e uma montagem e direção de arte que buscam quase sempre o efeito de um trompe l’oeil.
Entrando logo de início nesse ambiente e no conflito que pretende retratar, sem muito tempo para ambientação e para o desenvolvimento das relações entre os personagens, o diretor assume uma aposta arriscada: ou consegue que o espectador baixe a guarda e se entregue a esse estado alterado de percepção da realidade nos primeiros 15 minutos do filme ou o perde para sempre. O interesse causado pelos diversos recursos mencionados faz com que a balança penda, num primeiro momento, para o lado do diretor. Mas conforme a história avança, a estrutura montada pelo filme começa a dar sinais de sua fragilidade.
Sabemos que estamos diante de uma “pegadinha” e que basta descobrir a informação que o diretor está nos escondendo para teremos a resposta aos acontecimentos aparentemente inexplicáveis que observamos. E para um filme que se baseia no questionamento de nossa percepção de mundo, a exposição desse artifício é fatal. Pois Forster é um daqueles diretores que ainda necessitam de muletas e que agem de maneira quase desonesta, escondendo do espectador uma surpresa e tornando-a a razão de ser definitiva do filme, com medo de que sem essa carta na manga não consiga manter o interesse do público e que toda a estrutura moderna e esperta que criou venha abaixo, por não ter conteúdo que a sustente. E essa surpresa, como é de praxe, só será revelada nos últimos minutos do filme, em um final complacente que traz para o espectador a explicação racional esperada para tudo o que aconteceu, tranqüilizando-o: “o mundo ainda é o mesmo com o qual você está acostumado e tudo está sob controle”.
Marc Forster demonstra neste filme possuir inegável habilidade na criação de climas e ambientes, mas também que lhe falta a coragem de dar um passo além e radicalizar sua proposta, que é exatamente o que diferencia os grandes cineastas como David Lynch, que se liberta completamente da necessidade da lógica e da razão em um filme genial como A Estrada Perdida, ou David Cronenberg, que desenvolve análises profundas sobre a psique humana – em filmes como Spider – exclusivamente através da complexidade e mistérios próprios de nossa mente, sem a necessidade de truques de roteiro.

23.12.05

Apenas um Beijo

Ae Fond Kiss..., de Ken Loach, Reino Unido, 2004 - Cabine

O argumento de Apenas um Beijo está longe de ser original, embora tenha sido modernizado e globalizado: um DJ paquistanês muçulmano (Casim, interpretado por Atta Yaqub) apaixona-se por uma professora irlandesa católica (Roisin, interpretada por Eva Birthstle) em Glasgow, na Escócia. Como é previsível, as diferenças étnicas, culturais e religiosas das sociedades às quais pertencem serão um empecilho para a concretização desse amor.
Entretanto, quem pensou em uma comédia romântica inspirada na história de Romeu e Julieta – expectativa totalmente compreensível, baseando-se no trailer que está sendo veiculado nos cinemas – engana-se. Afinal de contas, estamos falando de Ken Loach, diretor inglês de filmes como Sweet Sixteen e Meu Nome é Joe (ambos em parceria com o roteirista Paul Laverty, que também assina o roteiro deste Apenas um Beijo), conhecido por sua obra francamente engajada.
Embora não esteja em sua melhor forma neste filme, Ken Loach parte dessa premissa arquetípica da história de amor proibida e evolui para um estudo sobre a intolerância religiosa (e neste caso de qualquer religião ou crença que estigmatize e enquadre as pessoas em determinados padrões de comportamento e deveres, assunto em pauta nestes tempos de cruzadas contra o mal) e, finalmente, sobre o preconceito tout court, em uma cena que seria de certo modo obsoletamente doutrinária não fosse a precisa escolha de Strange Fruit, na voz de Billie Holiday, para acompanhá-la.
Ao longo da projeção, observamos que não estamos diante de uma história de amor clássica. Recriminações e acusações mútuas entre o casal ocorrem o tempo todo, não há declarações arrebatadas de amor eterno (constantemente questionada pela irmã de Casim sobre a duração de seu amor, Roisin diz que só pode responder pelo que sente naquele momento) e o filme ainda questiona a noção de que o amor supera tudo e que deve sempre guiar nossas decisões, ao destacar as conseqüências que tais decisões infringem não apenas em quem as toma, mas nas pessoas que os cercam, mostrando que as escolhas nem sempre são tão fáceis quanto alguns filmes nos fazem acreditar.
Infelizmente, o filme é bastante irregular e o diretor não consegue abrir uma trilha limpa para o que quer contar em meio às arestas mal aparadas. Algumas viradas no roteiro não funcionam e parecem esquematizadas demais (uma falha recorrente no cinema de Ken Loach, que prioriza a mensagem que deseja passar em detrimento à narrativa que está desenvolvendo), as tramas paralelas – a emancipação da irmã mais nova e o desejo de Casim de abrir o próprio bar – carecem de interesse e força, e o final, embora deixe em aberto o futuro dos personagens (não há uma inclinação para o “... e eles viveram felizes para sempre”), parece apressado e simplista, desonestamente próximo do happy end.
Apesar de suas várias deficiências, ainda é um filme que vale a pena, desde que não se tenha grande expectativa sobre ele. As bem resolvidas cenas de sexo, as boas interpretações de Eva Birthstle e de Ahmad Riaz (que interpreta Tariq, pai de Casim, responsável por muitos dos alívios cômicos do filme mas também por alguns de seus momentos mais dramáticos) e a honestidade e isenção com que retrata as visões e contradições de ambos os lados trazem inegável simpatia a este pequeno e atraente filme de Ken Loach.

15.12.05

Brothers

Brødre, de Susanne Bier, Dinamarca, 2004 - Mostra SP

Com Brothers, a diretora Susanne Bier realiza uma obra rara – um filme de guerra dirigido por uma mulher –, que resulta em um drama intimista e psicológico, e não na habitual exaltação do heroísmo e bravura que acaba de certo modo por enaltecer a guerra.
A história gira em torno de dois irmãos, cada um satisfeito em exercer seu papel: Michael (Ulrich Thomsen) o de bom filho, pai e marido e Jannik (Nikolaj Lie Kaas, conhecido do público brasileiro pelos filmes Reconstrução e Corações Livres, este último também sob a direção de Susanne Bier) o de ovelha negra, inconseqüente e irresponsável. Tudo muda quando Michael é enviado pelo Exército para o Afeganistão, sofre um acidente em sua missão e é declarado morto. Prontamente Jannik endireita seu caráter e assume responsabilidades para com a esposa e filhas de seu irmão, adquirindo uma intimidade que por vezes enevoa os limites dessa afeição.
Embora contida e delicada ao retratar os conflitos de seus personagens, optando acertadamente por belas imagens e atuações precisas em detrimento dos habituais diálogos explicativos, a diretora peca por não construir um crescendo dramático que justifique o desenvolvimento dos personagens e de suas relações. O filme não concede ao espectador o tempo necessário para simpatizar e se identificar com os personagens e seus dramas, mas apenas acumula rapidamente informações que fazem avançar a história, sem contudo permitir um envolvimento maior do espectador com aquilo que vê na tela.
Acertando o tom no tratamento do tema a que se propôs, que é o do impacto emocional e psicológico da guerra – e da violência e desumanização que lhe é decorrente – não apenas naqueles que a vivenciam, mas em todos os que entram em contato com suas conseqüências (tema semelhante ao do mais recente filme de Cronenberg, todavia muito mais bem realizado e resolvido que este Brothers), a diretora parece ter se equivocado na fluidez e na dinâmica desse tratamento, desperdiçando dessa forma boas atuações (premiadas em San Sebastián) e uma história com potencial.