26.10.05

Cobertura da Mostra Internacional de Cinema

Caros amigos,
Em função da maratona para assistir ao maior número possível de filmes durante essa grande festa da sétima arte que é a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a publicação de críticas atualizadas no Enquadramento será prejudicada, uma vez que é humanamente impossível uma análise mais aprofundada - comme il faut - dos filmes durante esse período.
Isso não significa porém que vocês ficarão sem as críticas dos filmes que assistirei durante a Mostra. Fui convidado pelo site Cinequanon a trabalhar em sua cobertura do evento, convite que aceitei com prazer por concordar com a proposta do site - a de procurar fazer um trabalho consistente, opinativo, crítico, porém breve -, de modo a tratar do maior número possível de filmes, buscando orientar o leitor em suas escolhas e incentivando o debate sobre os filmes assistidos.
Abaixo seguem os links para as minhas críticas já publicadas no Cinequanon:
Boa Mostra a todos!

13.10.05

Lila Diz

Lila Dit Ça, de Ziad Doueiri, França, 2004 - Frei Caneca Arteplex

Depois de revolucionar o cinema com a Nouvelle Vague, a França parece estar ao largo dos bons ventos cinematográficos, que andam soprando mais para o oriente e seus cineastas de nomes quase impronunciáveis, como Apichatpong Weerasethakul, Hou Hsiao-Hsien, Wong Kar-Wai, Tsai Ming-Liang, Hong Sang-Soo, entre outros.
Lila Diz, com sua história de uma garota com a libido à flor da pele - a Lila do título – que causa grandes mudanças e conflitos na vida de um rapaz franco-argelino e seu grupo de amigos, é por demais esquematizado, um aglomerado de cenas colocadas em seqüência para fazer progredir artificialmente a história rumo a um final previsível e que tudo explica, apenas reforçando essa sensação em relação ao cinema francês.
Embora tenha trabalhado como assistente de Tarantino em três filmes e tenha sido premiado com seu longa de estréia (Beirute Oeste), o diretor Ziad Doueiri parece ainda não ter desenvolvido completamente sua linguagem. Neste filme, Doueiri depende em excesso da narração - o voice over, por exemplo, é onipresente durante o filme e invariavelmente redundante à imagem apresentada - para passar informações ao espectador, relegando as situações dramáticas a um segundo plano. Só entendemos, por exemplo, que o bairro em que vive é um ambiente opressor e limitador para o desenvolvimento de Chimo, o protagonista da história, porque ele assim o diz em sua narração, mas nunca chegaríamos a essa conclusão através das imagens, uma vez que o diretor não toma o tempo necessário para nos mostrar o cotidiano daquela comunidade, de modo a entendermos e nos identificarmos com os dilemas dos personagens.
Quando tenta trabalhar com a linguagem cinematográfica, Doueiri abusa de clichês. Há uma cena emblemática nesse sentido, quando Chimo e seus amigos invadem uma loja de antiguidades para saqueá-la. Para mostrar que Chimo é uma exceção dentro do meio em que vive, o diretor o coloca devaneando em meio aos livros lá expostos, em contraposição aos amigos que enchem os bolsos de jóias.
Há momentos de algum frescor e beleza, como quando a câmera enamora-se de Lila (interpretada pela belíssima Vahina Giocante), mas é muito pouco para redimir um filme que ficou claramente aquém daquilo a que se propôs.

7.10.05

Vida de Menina

Vida de Menina, de Helena Solberg, Brasil, 2004 - Cine Morumbi

Minha Vida de Menina é um livro publicado em 1942 contendo os diários escritos quase meio século antes por uma menina de 13 anos, descendente de ingleses, que vivia em Diamantina, no interior de Minas Gerais. Vida de Menina é a adaptação desses diários de Helena Morley (pseudônimo de Alice Brant) pela diretora Helena Solberg e a roteirista Elena Soárez, que fizeram mais de dez versões do roteiro na busca de traduzir a quase intangível beleza e poesia desse livro que encantou escritores do porte de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e da poetisa Elizabeth Bishop, que o traduziu para o inglês.
Não é pequeno esse desafio de adaptar para o cinema um diário (o que por si só já dificulta a tarefa, por se tratar de uma narrativa episódica, fragmentada) onde na aparência nada acontece (diferentemente de seu colega mais famoso, O Diário de Anne Frank). Entretanto, por baixo dessa aparente tranqüilidade, temos um dos mais belos retratos já realizados da infância e de sua visão de mundo, um comentário mordaz e preciso sobre a sociedade da época e um instantâneo de um país que havia acabado de abolir a escravatura e proclamado a república. Trata-se de um olhar privilegiado, pela idade da protagonista – que se encontra naquela encruzilhada onde já viveu o suficiente para notar as contradições e interesses dos adultos mas não o bastante para perder o deslumbramento diante das pequenas coisas da vida – e pela sua criação inglesa, o que lhe permite um distanciamento crítico na observação de sua realidade.
Para conseguir transpor para o cinema esse olhar pessoal que se encontra nas entrelinhas do diário, por trás de relatos aparentemente banais e cotidianos, são necessárias duas coisas: uma personagem forte o suficiente para conseguir por si só atrair a simpatia e atenção do público e uma linguagem que priorize o poético e não dependa de grandes feitos ou ações para se sustentar.
No primeiro ponto reside o grande trunfo do filme: Helena Morley não apenas é uma personagem fascinante, com sua vitalidade e contradições típicas da pré-adolescência, como Ludmila Dayer nos brinda com uma interpretação precisa e iluminada, injustamente preterida no Festival de Gramado (onde o filme levou seis prêmios, incluindo o de Melhor Filme, Roteiro e Júri Popular).
Já em relação à linguagem, Solberg parece ter buscado essa chave minimalista, porém o resultado foi irregular ao longo do filme. A seu favor conta a direção de arte (que, caso raro no cinema brasileiro, fez uma recriação de época que não tenta se sobrepor ao próprio filme, integrando-se harmonicamente ao conjunto), a bela fotografia de Pedro Farkas e a trilha de Wagner Tiso (embora excessiva em alguns momentos). Entretanto, o filme tem poucos momentos marcantes, seja pelo elenco de apoio irregular, seja pela dificuldade da diretora em atingir a veia poética necessária, o que acaba tornando muitas das cenas folhetinescas e calcadas em um humor simplório.
Realizar Vida de Menina foi uma decisão corajosa de Solberg, ainda mais tendo em vista sua temática muito distinta do grosso da atual produção nacional (o que inclusive atrasou seu lançamento em salas de cinema por mais de um ano). Suas limitações são ocasionadas mais pela grandeza do desafio do que por escolhas erradas da diretora, mas ao final nos deixa com a sensação de termos tido apenas um vislumbre desse raro diamante, o que pode ser uma boa desculpa para aqueles que ainda não leram o livro.

2.10.05

O Quarto Verde

La Chambre Verte, de François Truffaut, França, 1978 - Top Cine

O Quarto Verde é um dos últimos trabalhos de Truffaut, realizado seis anos antes de sua morte. Aproximar os dois eventos pode parecer um tanto óbvio, devido à temática do filme, que consiste basicamente de variações em torno de um único tema: a morte. Entretanto, tal comparação é importante para se entender o envolvimento de Truffaut com esta obra. Trata-se de um filme extremamente pessoal – mesmo para um diretor conhecido pelas obras francamente autobiográficas –, onde ele se expõe com rara franqueza discorrendo sobre algo que sentia muito próximo. “Acabo de completar 46 anos e já me sinto cercado de desaparecidos”, disse Truffaut na época das filmagens.
O próprio diretor interpreta Julien Davenne, um homem assombrado pela morte dos amigos, e em especial de sua esposa, durante a Primeira Guerra Mundial. Julien presta uma enorme devoção a seus mortos, a ponto de preterir o convívio com os vivos até o dia em que conhece Cecília, uma jovem que, apesar de compartilhar de muitos dos sentimentos de Julien, tenta trazê-lo de volta à vida.
Adaptado da obra O Altar dos Mortos, de Henry James, o filme possui um tom monocórdio do início ao fim, desde a interpretação bressoniana de Truffaut, passando pela belíssima fotografia de Néstor Almendros até a precisa trilha de Maurice Jaubert, remetendo justamente à platitude da morte. Truffaut acreditava no que ele mesmo denominou de “emoção pela acumulação”, daí o filme ser composto em sua maior parte de curtas cenas sem um fio condutor muito forte que as ligue, funcionando como um acúmulo de impressões sobre o tema principal. Os poucos planos seqüência estão sempre vinculados à jovem Cecília, que representa a única possibilidade de continuidade na vida fragmentada de Julien. “Eu me tornei simplesmente um espectador da vida”, nos diz o protagonista no início da história.
O filme possui algumas cenas de rara beleza: a seqüência inicial, com um olhar catatônico de Julien sobreposto a imagens de destruição da Primeira Guerra Mundial (onde a simples substituição da tonalidade preta e branca das imagens de arquivo pelo azul confere um valor subjetivo e não documental àquilo que está sendo relatado); o rosto de Julien visto através de um vidro ondulado, perturbado como um retrato de Munch; a “floresta de chamas” criada por Julien para seu culto aos mortos ou, a mais bela e bem fotografada de todas, o longo plano seqüência durante o enterro de Massigny, antigo amigo de Julien, onde a câmera vai flanando por entre as lápides até encontrar Cecília reclusa em um canto, pranteando a morte do amado.
O Quarto Verde é um filme contido, denso, de difícil assimilação. É uma obra à parte na filmografia do diretor, cujos filmes sempre tiveram uma transbordante vitalidade. Entretanto, para aqueles que enfrentarem o desafio, poderão ser recompensados com belíssimas cenas e uma profunda reflexão sobre uma das questões capitais da existência humana: sua finitude.